E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
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Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
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Francisco de Sá de Miranda
Gil Vicente visto pelo poeta, coetâneos na Corte portuguesa

      O texto a seguir foi extraído de "Gil Vicente, Vida do Paço, a educação da Infanta e o rei", da autoria de Noémio Ramos
      Sá de Miranda em todas as suas églogas usa pseudónimos para os poetas (pastores) do seu tempo, como era usual na época, para desenvolverem alusões enigmáticas (seguindo Petrarca) à realidade viva, todavia, parece-nos que a dois deles também os refere pelo seu nome: (Bernardim) Ribeiro e Gil (Vicente), recriando estes (idealizados) como figuras nos seus poemas – assumindo as palavras do autor – em imagens formuladas, pela perspectiva de quem escreve, a partir do carácter e das obras poéticas dos sujeitos celebrados. Quanto ao carácter e actividade de cada um deles, Bernardim é celebrado em Alexo (Alejo, Aleixo) e Vicente em Basto. Quanto à actividade poética (trovador), celebra os dois em Epitalâmio Pastoril (égloga dirigida a António de Sá, no casamento de sua filha) onde a figura de Ribeiro canta os males de Amor, de acordo com o sentido das suas próprias obras, e a figura Gil canta os louvores de Amor, conforme o sentido dos seus poemas musicados nas obras dramáticas. E, nas églogas que referimos, não é apenas o seu autor que faz o elogio de Ribeiro e ou de Gil, mas também o fazem os outros pastores (poetas) intervenientes, claro que pelas palavras e intenção, isto é, na personificação das figuras criadas por Sá de Miranda. Concluindo, as figuras de Ribeiro e Gil criadas nas églogas constituem sem dúvida idealizações, de facto imagens formuladas por Sá de Miranda, pela sua leitura atenta dos sujeitos (indivíduos), do seu carácter como das obras.
      A crítica tradicional tem aceitado bem, ou apenas supostamente no caso de alguns críticos mais formalistas, que a figura designada por Ribeiro nas églogas de Sá de Miranda represente Bernardim, mas não tem admitido que a figura que tem por nome Gil possa representar Vicente. Isto, essencialmente por duas razões: a primeira, pelos mitos criados desde há séculos de uma contínua guerra de afrontas entre Francisco de Sá e Gil Vicente, ou a existência de um desprezo mutuo; depois, porque os académicos vicentistas (sobretudo a partir do romantismo) criaram uma imagem de Gil Vicente que sempre se situou muito aquém da (senão oposta à) realidade, um fantasma baseado na leitura das obras realizada apenas pelo Parvo, nunca pelo Filósofo e, portanto, uma imagem jamais compatível com a figura de Gil criada por Sá de Miranda nas suas églogas. O espectro secular de um Vicente medieval e poeta popular, reproduzido e sedimentado através das academias, transmitido e martelado nos bancos da escola e promovido pelas instituições públicas e privadas responsáveis pela divulgação internacional da Cultura portuguesa, e ainda muito celebrado pelas elites culturais do país, que assim vão oficializando aquela criação académica (o espectro), bloqueia a percepção e impõe-se à reflexão, de tal modo que, incautos, também nós nos equivocámos por não cumprirmos com rigor a regra que a nós próprios nos impusemos ao iniciarmos os estudos das obras: a necessidade rigorosa de cortar por completo com a erudição da crítica tradicional, estabelecer uma ruptura, um corte epistemológico nos estudos do teatro de Gil Vicente, e não o cumprindo, usámos uma conjectura tradicional, assim errando toscamente quando da nossa apresentação da análise de Clérigo da Beira, ao considerarmos que o Francisco, filho de clérigo, podia ter alguma relação com Sá de Miranda; que não tem; Francisco de Sá ainda nem estava em Portugal, pois só chegou em Fevereiro de 1527 e, portanto, não estava entre o público, não pode ter assistido à representação da peça no Outono de 1526, além disso, Francisco, filho de clérigo, era também o Conde do Vimioso, Francisco de Portugal, um bom amigo de Gil Vicente, filho do Bispo de Évora: e o Conde sim, terá estado presente assistindo à representação do Clérigo da Beira.
      A égloga Basto, onde Sá de Miranda caracteriza a figura de Gil, pelo carácter por ele esmiuçado em Gil Vicente, é-lhe dedicada por completo (Gil e Bieito, são as duas faces da figuração da mesma pessoa, Gil e seu outro, um duplicado, isto é Gil Vicente representado pela sua própria Consciência, como ele próprio se representava a si próprio, pois Bieito, é nome pelo qual se pretende dizer “aquele de quem se fala bem”) e constitui um dos testemunhos mais importantes sobre o carácter e as ideias de Gil Vicente escrito por alguém que com ele partilhou um período significativo do seu tempo, no mesmo espaço (lugar, da elite) social e político. Verdade seja que, como testemunho, é algo filtrado pela personalidade da testemunha, ainda que ela apresente opiniões de terceiros elas são por si formuladas, porém, também por essa razão é de destacar, pois, para se poder avaliar o impacto que o autor dramático (Gil Vicente) teve no meio intelectual (não académico), e entre os poetas, ampliando as referências dos coetâneos juntando às de outros, sobretudo de João de Barros e de Garcia de Resende.

      (…)

      A égloga Basto inicia-se com a dedicação a Nuno Álvares Pereira, onde o autor (Sá de Miranda) depois de falar de si próprio na primeira copla (enlace de duas quintilhas), passa a descrever o meio social (todos os outros) na segunda copla. Na terceira, dirige-se ao destinatário (Nuno Álvares Pereira) num encómio caracterizante, e na quarta copla refere-se a quem vai estar em causa na égloga, expondo o carácter do visado, Gil Vicente na figura de Gil-Bieito: Por de mais tudo aperfia [desafia] / c’um peito tam livre e são, / que tomou tam certa guia; / daqui nace a presunção, / cuidam que da fidalguia. // Quem sabe por onde vai / leva sua conta feita, / nunca do caminho sai, / nunca olha a quem diz: «tomai / à esquerda, ou à direita». Na quinta e última copla do preâmbulo, conclui, afirmando que ele próprio e o senhor de Basto (ou o irmão) são ambos partidários de Gil, sublinha que com ele andam por onde poucos os acompanham – por onde a menos gente anda – porém, que não inveja, nem rivaliza nem compete (não aporfia) com o trabalho de Gil, que a cada um seu gosto manda e, completando a copla, na segunda estrofe, sublinha não faltarem a Gil ínvidos rivais (contendores) e, na sequência, passa a palavra ao apresentador da égloga, que será BASTO (o senhor de Basto) a fim de ouvir os seus pastores, o qual, nas suas palavras, logo após uma descrição (em duas coplas) do carácter da figura criada a partir do celebrado Gil Vicente enquanto jovem, constrói uma também figurada narração dos seus folguedos e aventuras, contribuindo ainda para a caracterização do moço, e na sua sequência, passa a descrever o tipo de divertimentos e excessos nas quatro coplas que se seguem. Na sétima copla conclui os tempos de juventude, justificando o afastamento do jovem: Gil, sendo mais moço, muita terra correra – terá ido para o estrangeiro – só com o seu farnel; e na oitava das suas coplas, Gil está de novo presente, agora como um líder já adulto, assi pastor sendo entre nós, é como todos os outros e, andando só, tacteando o ambiente, apalpando o terreno foi-se aperfeiçoando… Era grande amigo seu / Bieito; e, vendo tal mania, – a de Gil se isolar – interfere no sentido de o convencer a aparecer… BASTO passa então a palavra a BIEITO. E, já no final volta a pronunciar-se, na última copla, faltando nela o quarto verso da primeira estrofe: Contou-se isto pela aldeia / de pastores em pastores / logo foi a terra cheia / […] / então quais eram os melhores. // Mas, revolto o calendário, / visto tudo e contas feitas, / fica assentado o sumário: / Gil por homem voluntário, / homem Bieito às direitas.
      Sublinhe-se que em todo poema se faz referência a Gil, desde a apresentação do poema pelo autor à intervenção de BASTO e de PELAYO, sendo que a referência a Bieito serve apenas para lhe ser passada a palavra, quando o poema se constitui ele próprio, para além dos elogios a Gil, pelo diálogo entre Gil e Bieito. Portanto, o poema-diálogo Basto de Sá de Miranda constitui uma homenagem a Gil Vicente, é um poema laudatório ao carácter do dramaturgo, elaborado a partir do conhecimento do homem expondo a sua consciência em acção, tal como o louvado realizou e como, supomos, gostaria de ser recordado: a exemplo do que representou em Brás-Gil Terrón e Todo-o-Mundo e Ninguém.
      A égloga Basto é longa e não cabem aqui mais palavras a não ser as seguintes: no que segue ao que expusemos, os diálogos entre os pastores começam por mostrar algo com uma trama muito semelhante à parte inicial da autobiografia escrita por Gil Vicente (1502) em Pastoril Castelhano (Brás-Gil Terrón) – claro que ambos os autores (Gil Vicente e Sá de Miranda) figuram em Gil o homem solitário (Petrarca, De vita solitaria) na meditação e espírito contemplativo e, em Brás e Bieito o seu confronto com o mundo real (será assim também em Ninguém e Todo-o-Mundo) – mas, a verdade é que ambos incluem nas suas peças o casamento de um seu colaço Gregório (Silvestre), dando rosto aos do Paço. De salientar, as referências a Turíbio e Pascoal, bem como a intervenção de Pelayo, pseudónimos usados por Sá de Miranda para outros poetas portugueses incluindo-se ele próprio neles. De salientar ainda um dos factos que consideramos mais significativos: nas falas da figura de Gil predominam as imagens, as metáforas, as alegorias, as parábolas e outras figuras – mas também em Bieito, – Gil é um criador de fábulas. Sá de Miranda construiu assim a figura de Gil nas suas églogas, partindo da sua visão do carácter do homem – Gil Vicente – e das obras a que teve acesso pessoal, das peças que viu apresentar e representar, e no poema Basto presta homenagem ao indivíduo, ao seu carácter e inteligência criativa. Esta figura de Gil – Gil Vicente trovador – surge ainda bem destacada na égloga Epitalâmio Pastoril e também nela a figura de Ribeiro, celebrando a poesia de um e de outro, apontando o rigor e arte instrumental de Gil no acompanhamento musical do seu poema celebrando os louvores de Cupido e, ao terminar, Gil recebe o seguinte elogio de Turíbio (Sá de Miranda): Oh mi buen compañero, ah! que me hás dado / la vida com las tus buenas canciones, / menudamente de todo acordado!
      Bieito (Gil Vicente, quando dado a participar na vida social) surge ainda idealizado por Sá de Miranda em Encantamento, égloga dirigida a Dom Manuel de Portugal, – lume do paço, das musas mimoso – filho de Francisco de Portugal, o Conde do Vimioso, partidário do valor da arte de Gil Vicente.
      A égloga Basto e a Epitalâmio Pastoril de Sá de Miranda são as obras onde, de facto, o autor define e caracteriza uma figuração do poeta dramaturgo, e o idealizado Bieito – em modo de homenagem feita por Sá de Miranda – em Encantamento, surge mais representado pelo sentido e significados do poema (dito por Bieito), mas também pelo ritmo musical da rima, onde, nos versos decassílabos, a rima surge encadeada pelo estremo de cada verso com o meio do verso seguinte. Estas obras representam no seu todo, a verdade do relacionamento de Sá de Miranda com Gil Vicente (Gil-Bieito). Assim, conscientes da homenagem celebrada em Basto, voltamos à Carta Resposta a Fernando de Meneses onde podemos recordar um dos maiores elogios a Gil Vicente – dos motes o primor e altos sentidos – implícito nalguns dos versos mais divulgados de Sá de Miranda, constantes da seguinte copla (enlace):


Os momos, os serãos de Portugal 

tam falados no mundo, onde são idos 

e as graças temperadas do seu sal? 



Dos motes o primor e altos sentidos, 

os ditos delicados, cortesãos, 

qu’é deles? Quem lhes dá somente ouvidos?


  - Entende-se pelos diálogos das diversas églogas de Sá de Miranda que o autor se figura em Turíbio e, na égloga Alexo, Turíbio afirma: Anton, a dizir verdad, / pues com ella me esconjuras, / nunca supe hablar a escuras, / voyme por la claridad. Tal como a figura da Comédia no prefácio de Os Estrangeiros: Eu trato de coisas correntes, sou muito clara. Folgo de aprazer a todos (…) que não é muito boa manha de dona honrada (etc.); palavras em contraposição: a mim nunca me aprouveram escuridões, [pois] nem falo senão para que me entendam… Onde, com estas palavras marca a sua posição em relação a obras mais complexas e eruditas, obras com sentido oculto (a hiponóia grega) – só para alguns, os mais bem formados as entenderem – as obras de Gil Vicente.
Sobre o que se entendia então por escuridões, e hablar a escuras, leia-se a obra de Leonel da Costa (1570-1647) nas traduções de Virgílio, quando diz: «As Eclogas e Geórgicas de Vergílio. Primeira parte das suas obras, traduzidas do latim em verso solto portuguez. Com a explicação de todos os lugares escuros, história, fabulas que o poeta tocou e outras curiosidades…». Sublinhámos lugares escuros, para destacar o que se entendia por escuro (e escuridão): algo próximo de mais difícil de compreender ou de perceber, sem que seja pejorativo ou criticável.
  - Bieito, nome galego de origem latina, refere-se às palavras bene dicto com o significado de “bem dito”, também interpretado por aquele de quem se fala bem, ou aquele que fala bem.
Mas, em português veio obter ramificações deformadas passando de Benedito a Bento.
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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