Atentemos então em algumas das questões presentes em Reis Magos. Uma delas muito em voga, colocada por Agostinho, foi a qualidade ou o tipo, ou a natureza e o peso dos pecados: pecados mortais, veniais ou menores, leves ou mais pesados; eles enumeram-se, pois haveria alguns quase sem peso significativo. Sobre esta questão Agostinho adverte: o homem não pode, enquanto está na carne, evitar todos os pecados, pelo menos os pecados mais leves. Mas, esses pecados a que chamamos leves, não os considerem insignificantes: se [o Homem] os considerar insignificantes ao pesá-los, treme ao contá-los. Um grande número de objectos leves faz uma grande massa; um grande número de gotas enche um rio.
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O que atrás referimos sobre a obra de Aurélio Agostinho, um muito breve resumo (certamente insuficiente) de uma ínfima parte da sua doutrina e do seu pensamento, constitui apenas um pequeno episódio neste nosso texto, também porque se refere apenas a um dos episódios do Auto dos Reis Magos. Evidentemente que o nosso texto está integrado e contextualizado naquilo que nós pretendemos demonstrar, tal como tudo o que ficou figurado no episódio criado por Gil Vicente em Reis Magos está integrado na acção dramática e na sua motivação.
As perguntas feitas a frei Alberto, o Ermitão, pelos dois pastores em cena, quando um deles se qualifica a si próprio como bobo, são de facto uma boa figuração da elite mais poderosa daquele tempo, colocando em discussão as questões “filosóficas” (ideológicas) mais pertinentes da época, caricaturados como convém à comédia, e só na aparência bobos, apenas parecem simples para os espíritos mais simples …
Na verdade, este episódio constitui-se por uma imagem muito bem conseguida da questão em discussão na época, a da atracção e do desejo – da sexualidade – do pecado original, do peso dos pecados, em confronto com o que havia sido, senão aprovado, discutido pelos Concílios mais recentes, e que só muito mais tarde passou a ser doutrina dogmática da Igreja Instituição. E, por isso, continuava a merecer atenção dos doutores, teólogos, académicos e intelectuais da época.
Na obra de Gil Vicente não encontramos a substância dessa matéria em discussão, nem o autor vai tomar qualquer partido na discussão em curso entre os académicos, nem sequer assumir qualquer doutrina sobre o assunto... Não em si mesmas! Para o autor da peça tais questões pouco lhe importam, apenas lhe interessam enquanto representações, figurações dos colóquios praticados pelos intelectuais da época, – considerando essas configurações como a formulação da imagem de algum pensamento (questão assumida no espírito de uma personagem) integrado numa disputa entre eminentes protagonistas conhecedores das escrituras – e ou, até figurações de outras teorias ou doutrinas, provenientes da mente de algum doutor, teólogo, alto representante da Igreja, a favor ou contra alguma concepção, preceito ou ritual acomodado.
O confronto entre os dogmas introduzidos por Agostinho e os textos da Bíblia, ficou bem explícito aqui neste fragmento da representação, logo a seguir a uma pergunta de Gregório ao frade: Pecado es ser ñamorado? No enlace (a copla) que apresentamos a seguir, Valério (mais desenvolto) desenvolve o âmbito da questão colocada por Gregório, expondo algumas das implicações (com o exemplo) que “podemos encontrar na Bíblia: desde Adão”... É evidente que as perguntas não pretendem obter uma resposta do frade.
Valério:
Creó Dios por la ventura
hermosura
para ñunca ser amada?
Creola demasiada (210)
pera ñada?
Cómo dicís que es locura?
Mirad, mirad la scritura,
qué cordura
hallarés más amadora? (215)
Dende Andrán hasta ahora
ñesta hora
fue discreta criatura
que ño siga esta ventura?
Estas são na época questões académicas universais, muito sérias e do mais alto nível, não devemos esquecer que, mais de cem anos depois deste episódio ter sido representado, serão também eminentes académicos, os homens de bom saber, os catedráticos, a condenarem Galileu, entre muitos outros milhares de pessoas que põem em causa o Saber Instituído.
Pensamos que, quanto à questão colocada com este episódio de Reis Magos, em termos teóricos, como observou o cardeal Girolano Aleandro ao assistir a Jubileu de Amores, com o imperador Carlos V em Bruxelas, nem os Reformadores terão ido tão longe, mas estamos ainda a entrar em 1503.
Já antes na peça se tornara evidente este confronto, quando da introdução das perguntas sobre o peso dos pecados e, desde logo, com o desejo sexual da cabra, das quais destacamos: Digo que escondo el cabrito / [ ...ito] / por hacer berrar la cabra / y remojo la palabra / a cada habla... / Es gran pecado infinito / o es medio pecadito? E momentos depois, avança tanto ou mais explícito:
Decid padre: es gran pecado (155)
deñodado
andar tras las zagalejas
y enchirle las orejas
de consejas
por metellas en cuidado? (160)
Dexar entrar el ganado
en lo vedado
por andallas ñamorando?
Estálo Dios oteando
y acechando (165)
si desto tiene cuidado
ñi punto estará parado.
Que todos en mi lugar
a la par
andan transidos de amores: (170)
los jurados, labradores
y pastores
y aun el crego a más andar.
Lo veo resquebrajar
y sospirar (175)
por Turibia del Corral.
Dicidme fraile: es gran mal
desigual
o se debe perdonar
pues ño se puede escusar? (180)
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