(alguns trechos desta publicação, de Noémio Ramos)
Ler Inês Pereira
Quem leu a nossa análise da Tragédia Dom Duardos não terá dificuldade em ler alguns dos parágrafos que se seguem, pelo que, a quem ainda não o fez recomendamos aquela leitura antes de se iniciar nesta análise de Inês Pereira.
Na Tragédia Dom Duardos diz Camilote a Maimonda: …que cada vez que mirais / matais de pura afición / a aquel que os vio. (180).
- A letra das canções da peça Inês Pereira transcritas foram completadas, conforme se publicam em As obras de Gil Vicente, Volume-V. (p. 287-289). INCM-CET, direcção de José Camões.
Quien con veros pena y muere / qué hará cuando no os viere? // Vivirá triste muriendo / días y años perdiendo / y la vida consumiendo / eso poco que viviere.
Assim se inicia a peça Inês Pereira, com Inês (Castela) fechada dentro de casa de sua Mãe (a Espanha do Imperador), cantando: Quem com ver-vos (a Liberdade) pena e morre / que fará quando não vos vê?
Devemos relembrar que esta morte, como é entendida pelos versos, é a morte de amor cortês, como Camilote o afirma, remetendo-se para a apresentação de Maimonda ao Imperador: Por mostrar por quien soy muerto (215) / que merece.
Devemos salientar que as cantigas da peça Inês Pereira, por autoria de Gil Vicente, por selecção do autor ou porque ele próprio glosa outras, vão sempre reflectindo os significados e conteúdos da peça, figurando Toledo e a sua revolta, as ofensas e vinganças da guerra civil (a nobreza pelo escudeiro: Mal me quieren en Castilla), ou o estado de expectativa em Canas do amor, ou em sentido oposto, nas palavras do judeu Latão: Pelo mar vai a vela / vela vai polo mar.
Tras la derrota de Villalar, la situación era mucho más grave que nunca pero no desesperada. En las riberas del Tajo los rebeldes disponían de un ejército intacto y de un general discutido, pero dinámico, Acuña, que gozaba de una popularidad considerable entre la población. Añadamos a estos datos las repercusiones de un acontecimiento exterior: la invasión de Navarra por las tropas francesas iba a obligar a los virreyes a dirigir sus fuerzas hacia el Norte, justo después de haber conseguido la victoria sobre los enemigos internos. Afirmémoslo una vez más: nada se decidió en Villalar. Toledo seguía manteniendo la antorcha de la revolución y podía tener esperanzas de trasladarla nuevamente, como había hecho ya en el mes de enero, al norte del Guadarrama. Lidera então a revolta Maria Pacheco de Mendoza, a mulher de Juan Lopéz de Padilla, executado após a derrota em Villalar.
- Joseph Pérez, La revolución de las Comunidades de Castilla. Pág. 316.
Assim, encontramos uma destacada homenagem prestada a Maria Pacheco de Mendoza, que lutou heroicamente pelo Povo, desde o início (1519) até ao último momento (1522), defendendo-o, por amor aos mais sublimes valores patrióticos que desencadearam a revolta em Toledo, numa cantiga (também bailada) com letra do autor, posta em preeminência pelo enquadramento – requerendo a entrada de certas moças e mancebos (em especial Luzia e Fernando), – no seu texto figurando os danos sofridos na sua luta pela Liberdade:
Mal ferida va la garza [Maria Pacheco, 1522]
enamorada…
Sola va y gritos daba.
A las orillas de un rio [Tejo]
la garza tenía el nido [Toledo]
ballestero la ha herido
en el alma.
Sola va y gritos daba. (750)
Entretanto, o mesmo sentido inicial da peça se expressa mais adiante quando, após realizar o casamento com o Escudeiro (aliança com a nobreza castelhana), Inês julgando ter alcançado a liberdade, canta (referindo-se à Liberdade):
Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan poco os mirara. (780) // Veros harto mal há sido / mas no veros peor fuera / no quedara tan perdido / pero mucho mas perdiera / que viera aquell que nos viera / cual quedara / si nos hubiera mirado.
Outras cantigas que se seguem denotam o conformismo de Inês (Castela), Quem bem tem e mal escolhe / por mal que lhe venha nam se anoje. Segue-se a sua revolta emocional, e, a partir dela, o desconcerto, ou melhor, a concertação, que se configura pelas suas alianças, primeiro para se organizar em função de Pero Marques (Povo), pois na sequência do sucedido no mundo real (como Gil Vicente vai demonstrar), só após a figura na personagem se ter conformado ao amor cortês (ao Poder da aristocracia) – pois que, ao cortesão cabe servir, tendo como objecto do serviço a sua dama, seguindo a prática de vassalagem, a fidelidade inquestionável e o esquecimento de si mesmo – e logo depois, com o Ermitão (Carlos V) para atraiçoar o seu Amo (Povo), e assim, este Amo, Pero Marques, muito ufano, triunfa servindo – fielmente – a sua dama Inês (objecto do seu serviço), a Nação e o Imperador da Alemanha (do Sacro Império), assumindo a prática da vassalagem, esquecendo-se de si próprio. Bem sabedes vós marido / quanto vos amo / sempre fostes percebido / pera gamo. Carregado ides noss’amo / com duas lousas. / Pois assi se fazem as cousas. Também assim, usando de ironia e sarcasmo, numa caricatura própria da comédia, se formula uma crítica indelével ao amor cortês, tal como, contrastando, o autor havia concretizado antes, na maior perfeição e beleza, na forma idealizada de tragédia, em Dom Duardos.