E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
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Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
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Sobre o "Auto de Inês Pereira"
O Povo perante a Nação nas Comunidades de Castela
(alguns trechos desta publicação, de Noémio Ramos)
Ler Inês Pereira

Quem leu a nossa análise da Tragédia Dom Duardos não terá dificuldade em ler alguns dos parágrafos que se seguem, pelo que, a quem ainda não o fez recomendamos aquela leitura antes de se iniciar nesta análise de Inês Pereira.
Na Tragédia Dom Duardos diz Camilote a Maimonda: …que cada vez que mirais / matais de pura afición / a aquel que os vio. (180).

               - A letra das canções da peça Inês Pereira transcritas foram completadas, conforme se publicam em As obras de  Gil Vicente, Volume-V. (p. 287-289). INCM-CET, direcção de José Camões.

      Quien con veros pena y muere / qué hará cuando no os viere? // Vivirá triste muriendo / días y años perdiendo / y la vida consumiendo / eso poco que viviere.
      Assim se inicia a peça Inês Pereira, com Inês (Castela) fechada dentro de casa de sua Mãe (a Espanha do Imperador), cantando: Quem com ver-vos (a Liberdade) pena e morre / que fará quando não vos vê?
Devemos relembrar que esta morte, como é entendida pelos versos, é a morte de amor cortês, como Camilote o afirma, remetendo-se para a apresentação de Maimonda ao Imperador: Por mostrar por quien soy muerto (215) / que merece.
      Devemos salientar que as cantigas da peça Inês Pereira, por autoria de Gil Vicente, por selecção do autor ou porque ele próprio glosa outras, vão sempre reflectindo os significados e conteúdos da peça, figurando Toledo e a sua revolta, as ofensas e vinganças da guerra civil (a nobreza pelo escudeiro: Mal me quieren en Castilla), ou o estado de expectativa em Canas do amor, ou em sentido oposto, nas palavras do judeu Latão: Pelo mar vai a vela / vela vai polo mar.

      Tras la derrota de Villalar, la situación era mucho más grave que nunca pero no desesperada. En las riberas del Tajo los rebeldes disponían de un ejército intacto y de un general discutido, pero dinámico, Acuña, que gozaba de una popularidad considerable entre la población. Añadamos a estos datos las repercusiones de un acontecimiento exterior: la invasión de Navarra por las tropas francesas iba a obligar a los virreyes a dirigir sus fuerzas hacia el Norte, justo después de haber conseguido la victoria sobre los enemigos internos. Afirmémoslo una vez más: nada se decidió en Villalar. Toledo seguía manteniendo la antorcha de la revolución y podía tener esperanzas de trasladarla nuevamente, como había hecho ya en el mes de enero, al norte del Guadarrama. Lidera então a revolta Maria Pacheco de Mendoza, a mulher de Juan Lopéz de Padilla, executado após a derrota em Villalar.
              - Joseph Pérez, La revolución de las Comunidades de Castilla. Pág. 316.

      Assim, encontramos uma destacada homenagem prestada a Maria Pacheco de Mendoza, que lutou heroicamente pelo Povo, desde o início (1519) até ao último momento (1522), defendendo-o, por amor aos mais sublimes valores patrióticos que desencadearam a revolta em Toledo, numa cantiga (também bailada) com letra do autor, posta em preeminência pelo enquadramento – requerendo a entrada de certas moças e mancebos (em especial Luzia e Fernando), – no seu texto figurando os danos sofridos na sua luta pela Liberdade:


Mal ferida va la garza [Maria Pacheco, 1522]

enamorada…

Sola va y gritos daba.



A las orillas de un rio [Tejo]

la garza tenía el nido [Toledo]

ballestero la ha herido 

en el alma. 

Sola va y gritos daba. (750)


      Entretanto, o mesmo sentido inicial da peça se expressa mais adiante quando, após realizar o casamento com o Escudeiro (aliança com a nobreza castelhana), Inês julgando ter alcançado a liberdade, canta (referindo-se à Liberdade):
      Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan poco os mirara. (780) // Veros harto mal há sido / mas no veros peor fuera / no quedara tan perdido / pero mucho mas perdiera / que viera aquell que nos viera / cual quedara / si nos hubiera mirado.
      Outras cantigas que se seguem denotam o conformismo de Inês (Castela), Quem bem tem e mal escolhe / por mal que lhe venha nam se anoje. Segue-se a sua revolta emocional, e, a partir dela, o desconcerto, ou melhor, a concertação, que se configura pelas suas alianças, primeiro para se organizar em função de Pero Marques (Povo), pois na sequência do sucedido no mundo real (como Gil Vicente vai demonstrar), só após a figura na personagem se ter conformado ao amor cortês (ao Poder da aristocracia) – pois que, ao cortesão cabe servir, tendo como objecto do serviço a sua dama, seguindo a prática de vassalagem, a fidelidade inquestionável e o esquecimento de si mesmo – e logo depois, com o Ermitão (Carlos V) para atraiçoar o seu Amo (Povo), e assim, este Amo, Pero Marques, muito ufano, triunfa servindo – fielmente – a sua dama Inês (objecto do seu serviço), a Nação e o Imperador da Alemanha (do Sacro Império), assumindo a prática da vassalagem, esquecendo-se de si próprio. Bem sabedes vós marido / quanto vos amo / sempre fostes percebido / pera gamo. Carregado ides noss’amo / com duas lousas. / Pois assi se fazem as cousas. Também assim, usando de ironia e sarcasmo, numa caricatura própria da comédia, se formula uma crítica indelével ao amor cortês, tal como, contrastando, o autor havia concretizado antes, na maior perfeição e beleza, na forma idealizada de tragédia, em Dom Duardos.

...mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube

          Com o sarcasmo de comédia no destino escarnecedor de Inês, no Auto de Inês Pereira, com uma forma aparente e figuração diferentes e até opostas, o autor exprime a mesma mensagem de significado político e conteúdo último, digamos que, num subtexto muito próximo ao da Tragédia Dom Duardos com o infortúnio trágico no destino ressentido de Flérida. E, enquanto Duardos impondo a sua elegância, cortesia e cultura (em falso pano) se projecta como herói trágico, (na imagem inversa, pelo espelho) mentindo, atraiçoando e até violando as regras e a honra de Cavaleiro, aniquilando a Liberdade (Maimonda) em prol da formosura, leva (embarcando) Flérida pelo engano, Pero Marques desenha-se como o anti-herói, um tolo, desajeitado e até servil, (na imagem inversa) enquanto entrega sincera e totalmente o seu ser, para cumprir a sua aliança confiando a Liberdade a Inês, e, no engano, sente-se feliz e satisfeito sem dar conta da fealdade que transporta. Porque si con muestra de rey / vendiéredes después señor / falso paño, / vos os quedaréis sin ley / y será emperador / el engaño.
          E assim, supomos que com o Auto de Inês Pereira o autor apresenta a resposta ao desafio logo após as críticas, porque duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores em consequência da Tragédia Dom Duardos.
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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O Teatro de Gil Vicente
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