E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
o projecto
eBookseBooks
Back
Next
Sobre o "Auto do Velho da Horta"
Representado na Corte portuguesa em 1 de Novembro de 1512



O texto desta página, autorizado pelo autor, faz parte do livro:
ISBN -
978-972-990007-5
Gil Vicente, o Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura"
,
de Noémio Ramos
Velho da Horta
Da aparência e à realidade temática

        Toda a acção da peça decorre no pátio Belvedere, conhecido por hortulus ou viridarium, em 1 de Novembro 1512. O pátio denominado Pátio das Estátuas, que hoje se conhece por Pátio Octogonal (planta quadrada com os vértices cortados, que formam mais quatro lados, bem mais pequenos que os do quadrado base), era um pequeno jardim (hoje ladrilhado) no pátio interior do palácio de Inocêncio VIII (Papa 1484-1492), o Palácio Belvedere, então residência papal. No pátio ladrilhado ainda se encontra a tradicional fonte no seu centro, desconhecemos se na sua forma original, que serviria também de bebedouro para os cavalos.
        O jardim de Belvedere como Museu do Vaticano, no seu início só foi aberto a visitas públicas de populares (pagas, tal como qualquer entrada numa igreja de Roma) a partir de 1510, algures entre Agosto 1510 e o fim desse ano, período em que também estiveram suspensos os trabalhos de pintura de Miguel Ângelo na abóbada da Capela Sistina... E desde então, com algumas interrupções, se tem mantido até hoje aberto ao público a troco de um pagamento.
       Assim, nas próprias cenas do Auto, embora o texto da peça de que dispomos o não refira, poderão encontrar-se várias pessoas (muitos figurantes) pelo jardim, apreciando as plantas de cheiro e as primeiras estátuas do Museu: o Apolo de Belvedere, o Laocoonte, etc.. Numa encenação (embora abusiva) poderão estar também presentes algumas daquelas esculturas (inacabadas) cuja realização foi iniciada por Miguel Ângelo para o primeiro projecto da Sepultura de Júlio II …
       A acção da peça inicia-se logo após o momento em que se acabou de celebrar a missa dita pelo Papa na Capela Sistina, e a cerimónia inaugural da apresentação pública da pintura de Miguel Ângelo na abóbada. A introdução - até ao verso 29 (seriam 30, um dos versos foi cortado pela censura) - é a apresentação do protagonista, a personagem principal, o Velho que figura o Papa Júlio II. Este apresenta-se em cena, na manhã de 1 Novembro de 1512 como um santo homem rezando um pai-nosso enquanto aprecia as estátuas (simbolizando a missa acabada de celebrar). A oração, modificada, figura ainda uma explicação do latim de igreja usado e as preocupações pessoais de Júlio II que se dirige rezando à estátua de Apolo.
       A confirmar a data da representação da peça está a paródia de Gil Vicente à ladaínha tradicional a Todos-os-Santos da Alcoviteira: a todos santos marteirados.
       Gil Vicente apresenta o conceito fundamental da peça pelas palavras do Velho acerca da natureza do amor, seguindo o formulário lírico da época. (*)
O Velho no fim dos seus dias (um velho amante) prossegue com a sua paixão, agora uma menina, uma Arte nova (ervas novas).
       Uma menina (a pintura de Miguel Ângelo) que se lhe apresentou na sua velhice. Perante a situação o Velho sabe que desse amor não receberá nada em troca. Jamais a Moça lhe poderá retribuir um amor semelhante… A não ser na sua Sepultura: – que morrer é acabar / e amor não tem saída.


Moça:         Que folgura!
            Que pomar e que verdura,
            que fonte tão esmerada…

Velho:         Na água, olhai vossa figura,
            vereis minha Sepultura
            ser chegada.
       Aqui a síntese entre o parvo e o filósofo de Floresta de Enganos, a síntese alcançada pelo autor na construção do diálogo atinge um dos pontos altos da sua mestria: não só é perfeito para a leitura pelo espírito (alma) mais simples (parvo), um Velho apaixonado por uma jovem que zomba dele; como se aplica perfeitamente a uma leitura mais complexa, pelo espírito (alma) mais complexo (filósofo) integrando na História da Europa da época, o carácter da figura representada no protagonista, apresentando o legado mais importante que o Papa Júlio II deixou às gerações futuras, às ideologias, e mais ainda, à filosofia da Arte, pelo prazer inteligível, que só podemos alcançar pelo desfrutar da uma obra Arte.
       Porque, para Gil Vicente (e também para nós), o grande legado de Júlio II foram as obras de Arte de que foi grande impulsionador e mecenas, donde se destacam: (1) o Museu do Vaticano no pátio das estátuas, o então jardim conhecido por viridarium ou hortulus (a Horta), (2) a Basílica de São Pedro ainda não muito visível na época e portanto, sobretudo (3) a pintura de Miguel Ângelo na abóbada da Capela Sistina. Contudo, o Velho não alcança uma união eterna (casamento na morte) com a Moça, pela sua Sepultura ficar por concluir e sem saber se alguma vez se concluirá.

(*)
Velho:    
Oh fortuna triunfante!
            Quem meteu um velho amante
            com menina?

            O maior risco da vida,
            e mais perigoso, é amar…,
            que morrer, é acabar...,
            e amor não tem saída.

            E pois, penado,
            ainda que seja amado,
            vive qualquer amador…
            Que fará o desamado,
            e sendo desesperado
            de favor?
       Evidentemente, Gil Vicente sublinha a importância da Horta, — o Museu — não apenas por servir de título ao seu Auto, mas por ser o lugar onde decorre a acção dramática inserindo a sua peça naquele espaço, de modo inteligível, incluindo a pintura da Capela Sistina:

          Onde se criou tal flor,
          eu diria que nos céus!?
            (…)
          Pois damas se acharão
          que não são vosso sapato
.


        O facto de o autor da peça introduzir Miguel Ângelo (Alcoviteira) como intermediário entre o Papa (Velho) e a Arte (Moça), demonstra também o valor atribuído à Arte do seu tempo, — também as suas Artes plásticas — aos artistas e às suas manifestações mais destacadas e a um dos seus grandes mecenas:
Júlio II.
       Outras questões que se destacam no tema da peça, são expostas pela sabedoria do Velho, ao exprimir o conflito do Desejo (e a vontade) com a Razão, quando esta impõe as suas limitações (cautelas, contrato, condições…) perante a entrega generosa, sem querelas, ao sentimento humano do amor, e a pronta resposta da Moça ao manifestar o seu acordo às palavras do Velho.

Velho:      Quanto for mais avisado,
             quem de amor vive penando,
             terá menos siso amando
             porque é mais namorado.

             Em conclusão:
             que amor não quer razão,
             nem contrato, nem cautela,
             nem preito, nem condição,
             mas penar de coração
             sem querela.


Moça:     
U-los, esses namorados?
             Desinçada é a terra deles!
             Olho mau se meteu neles,
             namorados de cruzados…

             Isso si!
Velho:     
Senhora eis-me eu aqui,
             que não sei senão amar


       Devemos constatar que aqui a Moça apoia e dá maior força às palavras do Velho, pois: onde estão namorados como esses? Já não se encontram tais namorados! Nestes tempos que correm apenas os vemos interessados pelo dinheiro: namorados de cruzados… Isso sim!
As personagens e os figurados

Velho
- figura o Papa Júlio II, caracterizado no prólogo e, com o cenário (e os autos anteriores, a mythologia) permite identificar o Velho, dono da Velha. 

Moça
- figura a Arte, o pensamento livre, uma nova liberdade, uma liberdade de criar e decidir por si só. A Moça é digna, confiante e amistosa. Primeiro como donzela bela, passa por todos os conceitos de Arte que Platão expõe em Hípias (maior), para oferecer na peça o belo (a Arte) como prazer inteligível.

Parvo
- figura Erasmo de Roterdão, padre da Igreja, servidor da Velha. Procura estabilizar e manter a união do Velho com a Velha.

Velha
- figura a Igreja (instituição). É a “mulher” que o Velho tem de suportar.

Alcoviteira
- figura Miguel Ângelo - uma personagem feminina figurando um homem e representada por um homem, é típico da comédia - a quem compete unir o Velho com a Moça, conforme o contrato estabelecido para a construção da Sepultura de Júlio II.

Alcaide
- figura o oficial de Justiça em si mesmo (antiga designação).

Beleguins
(4) - figuram os agentes de polícia que acompanham o Alcaide.

Mocinha
- figura uma Vidente na forma de uma outra Moça. A sua função na peça é a de ler na água da fonte - já antes se (pre)via na fonte: vereis minha Sepultura ser chegada - lendo como presente o que está por vir (futuro). Uma ex-machine, com a finalidade de resolver e fechar os episódios em aberto.

As quatro filhas deserdadas são as principais nações italianas: Veneza, Florença, Milão, Nápoles.
Cenário: figura o pátio octogonal, jardim das estátuas - inauguração da pintura da abóbada, Capela Sistina.

      O que aqui transcrevemos do livro de Noémio Ramos são apenas alguns aspectos da análise realizada pelo autor. O Auto do Velho da Horta de Gil Vicente insere-se na História da Europa também nas lutas  políticas e ideológicas do século xvi e esconde a beleza de um prazer inteligível que, só no final da transcrição do Auto, o autor da análise apresenta ao leitor.
      Mas a representação desta peça terá sido um grande incentivo aos poetas da Corte portuguesa para a reunião dos seus poemas, mais tarde, em 1516, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, aqui ficam outros apectos do Auto do Velho da Horta

      Cativo de minha tristura...

     Este poema de Mancias, o enamorado, terá contribuído para a criação da lenda sobre a sua própria vida, pois a lenda criada corresponde a uma interpretação (da época) do poema.


[ Esta ideia foi também exposta por Cortijo Ocaña em Porfiar hasta morir (de Lope de Vega - lenda da vida de Mancias), onde afirma que a relevância do poema: radica en convertirse en poema fundacional del mito de Macías-amante. ]


    
Gil Vicente promove o Cancionero General (1511) de Hernando del Castillo, e recorre em parte aos poetas da Corte portuguesa, incentivando a sua colaboração na acção do auto como figurantes, e Mancias é o poeta que morre de amor e com ele fica sepultado. O poema mais importante de Mancias, adapta-se bem ao mythos do Auto do Velho da Horta...
      E assim o transcrevemos:

[ Usamos o texto do Cancioneiro Gallego-Castelhano, estudo de Henry Lang, Yale University, de 1902, pois, no Cancionero de Baena, na nossa opinião, a tradução feita do galego para castelhano é fraca e contém alguns erros. ]


      Cativo! de mia tristura
      ja todos prenden espanto
      e preguntan que ventura
      é que m’ atormenta tanto.    (4)        
[ é, (foi)  // preferível:  é ]

      Que non sei no mundo amigo
      a quen mais de meu quebranto
      diga d’ esto que vos digo:
            Quen* ben see, nunca devia
      al pensar, que faz folia.                     
[ al, outra coisa ]
                                                                      [ faz folia, provoca zombaria ]
      Cuidei sobir en alteza
      por cobrar mayor estado,
      e caí en tal pobreza
      que moiro desamparado.                  
[ moiro, morro]

      Con pesar e con desejo
      ben vos direi, mal-fadado,  (15)        
[ ben, que... ]
      o que ouço ben e vejo:       (16)        
[ o que eu sei, bem o vejo ]
            Cando o louco cree mais alto
      sobir, prende mayor salto.

      Pero que provei sandece,
      por que me dev’ a pesar,
      minna loucura assi crece
      que moiro por én trobar.     (22)        
[ por én, porém = (eu) por isso ]

      Pero mais non averei
      se non ver e desejar,                           
[
sublinha-se: senão ver e desejar ]
      e por én assi direi:                                [ por én, porém = (eu) por isso ]
            Quen en carcer sol viver,
      en carcer deseja morrer.

      Minna ventura en demanda
      me poso atan dultada, (*)                   
[ me pôs a tão duvidada ]
      que meu coraçon me manda
      que seja sempre negada.

      Pero mais non saberán
      de minna coita lazerada, (**)
      por én assi dirán:                                 
[ por én, porém = por isso (eles) ]
            Can ravioso é cousa brava,
      de seu sennor sei que trava.


Notas:
      No Cancionero de Baena, no verso (4) a ventura já foi passado; em (22) no manuscrito consta tovar com um erre [r] em cima como emenda, para que se entenda trovar, pois Mancias morre por fazer trovas na sua loucura amorosa; em (15,16) Alfonso de Baena pode estar mais correcto, tanto no que, que interroga, como em: lo que yo he ben o vejo; o poeta quer dizer que muito bem vê, com clarividência, a loucura em que caiu, e que bem o sabe.
      Há ainda outras diferenças sem agravo. O pero, no séc. xvi, é também português, leia-se por exemplo, Ropicapnefma de João de Barros.
       *   Que, em vez de quen, também seria aceitável…
      (*) A sua ventura torna-se tão dúbia, tão incerta na demanda… Que o seu coração lhe manda que sempre a ela se negue.
      (**) A expressão “coita lazerada” deve ser interpretada num múltiplo sentido de coito, assim: o serviço de amor desfeito; o coração despedaçado; o seu refúgio (esconderijo) devastado; e o seu íntimo (cárcere em que vive o poeta) aniquilado… O seu senhor bravo pelas trovas serem conhecidas (topado o refúgio), raivoso como um cão, trava, põe termo ao amor do poeta, ao refúgio interiorizado (amor cortês), e na lenda, põe termo à vida do poeta fazendo da prisão a sua sepultura. 
 
       A introdução de Mancias serve também para caracterizar o amor do Velho como cortês, e o seu desejo de mais não haverei senão ver e desejar, como amor à Arte, e da sua união na morte com ela no seu refúgio, de modo que, vivendo assim neste amor: Quem em cárcere só viveu / em cárcere deseja morrer… O cárcere do Velho é também a Horta - onde espera ver a sua Sepultura ser chegada, - o jardim das estátuas, e o seu Senhor (Deus), bravo, aí o há-de travar, aí lhe porá termo à vida unindo-o na morte naquela - obra de Miguel Ângelo - Sepultura com a Moça.
      Gil Vicente no diálogo com a Moça, sem que se possa assinalar uma relação formal directa, glosa na acção da peça os gozos de amor expostos em Siete gozos de amor de Rodríguez del Padrón. Haverá ordenação diversa, mas glosa el ciego contemplador / que cegó tu resplendor / la ora que te miré, ou, fue por no ser entendido / que en bivo fuego de amores / yo ardía..., a esperança do prazer, a morte antecipada, etc.. Para se concluir o desejo de sepultura do Velho, como Rodríguez del Padrón considera merecer que o seu amor (à sua amada) fique preso ao seu corpo na (como) sepultura, pois se preso ao seu amor viveu, nesse cárcere deseja morrer, e morrendo como Mancias, numa glória comum, com ele mesmo deseja ser sepultado.
       Como refere Cortijo Ocaña: o código cortês (...) encerra um paradoxo trágico: o amor é morte, e não apenas como metáfora stilnovista e cortês, senão como a necessária conclusão do código na sua aplicação à realidade.
     
      O público mais habitual é bastante culto, os figurantes são muitos dos poetas da Corte e as suas musas, e se o poema Cativo de minha tristura, de Mancias, resume o drama do Velho (na trama do enredo, a aparência do mythos), no primeiro episódio da acção dramática, no diálogo com a Moça, Gil Vicente coloca na acção, isto é, põe em cena (encena) e desenvolve, o poema do galego Rodriguez del Padrón, Siete gozos de amor. Também este poema consta do Cancionero General (1511) de Hernando del Castillo, tal como a obra de Rodrigo de Cota a que antes fizemos referência.

       As razões de Gil Vicente para ir buscar este poema, para além da referência e até relação com Mancias e a sua sepultura, é que este poema é uma paródia a muitos outros poemas religiosos da sua época que cantavam os gozos de amor da Virgem, como o do Marquês de Santillana, Íñigo Lopez de Mendoza (1398-1458), Los gozos de Nuestra Señora, ou o poema do franciscano, Fray Íñigo de Mendoza (1425?-1507?) — com larga presença no Cancionero General — também intitulado Los gozos de Nuestra Señora (Anunciação, Concepção, Reis Magos, Ressurreição, Ascensão, Pentecostes, Assunção)... Perante este poema e a vida social do seu autor, Rodriguez del Padrón (1395?-1452?), usa a ideia dos gozos da Virgem para referenciar e desenvolver os sete gozos de amor e um finalizar (no cabo), — como o então jovem frade nos seus versos — dirigindo os seus amores a uma donzela, de quem não será, não pode ser, correspondido, pelo que os seus prazeres se resumem a ver e desejar.
      Para uma reconstituição da encenação é importante conhecer o que envolve estas obras e os seus autores, a fim de tentar perceber as motivações e as intenções de Gil Vicente quando coloca na acção da sua peça a paródia de Rodriguez del Padrón. 
      Primeiro, o Cancionero General (1511) está fresco na memória de todos, acabou de se imprimir, depois porque vem avivar a lembrança dos poetas de uma elite cultural comum, e por fim, porque nesta obra Gil Vicente encontra matéria disponível acessível ao uso, de modo a facilmente fazer chegar a sua mensagem não apenas aos espíritos mais cultos, mas a todos os que tinham acabado de ler o Cancionero. E nele, em Otras coplas de Vázquez de Palencia contra Fray Yñigo de Mendoza..., este autor diz a certo passo:

         Que este religioso santo
         metido en vanos plazeres
         es un lobo en pardo manto...
         Como entiende y sabe tanto
         del tracto de las mugeres!

     ...
Assim era conhecido Fray Íñigo de Mendoza, mas também pelos poemas eróticos feitos na juventude. Possivelmente terá sido perante Los gozos de Nuestra Señora deste frade, que Rodriguez del Padrón na sua paródia inclui a atitude do poeta, ao colocar o sujeito às portas do templo fazendo versos à Virgem (ou uma virgem) ...

        Ante las puertas del templo
         do recibe el sacrifício,
        Amor, en cuyo servicio
         noches y dias contemplo.

        La tu caridad demando
        obedescida, Señor,
        a aqueste ciego amador,
        el qual te dirá cantando
        si de él te mueve dolor,
        los siete gozos de amor.
        Claro que não sabemos se o poema de Rodriguez del Padron teve origem nas atitudes e nas obras de Fray Íñigo de Mendoza, mas isso não é importante para o caso, pois como este frade havia outros, muitos outros, e o que Gil Vicente faz é pegar nesta ou noutra situação semelhante (na comédia: algo provável — Aristóteles — ou possível de ter sucedido) para assim motivar o seu público para a acção do Velho da Horta.
        O poema de Rodriguez del Padrón não chega a ser ofensivo da Virgem nem da religião, o autor remete a paródia para os gozos do frade que se vê cego de paixão, ansioso e transbordando de desejo, em confronto com a Virgem, afinal uma donzela (virgindade) da qual não obtém favores e nem os seus sete gozos de amor alcança, e assim sendo, não lhe resta senão a sorte de Mancias, onde ele e com ele ficar na sepultura.
        O Papa Júlio II — um pouco mais novo que o frade Íñigo — era também frade franciscano e também apaixonado por uma donzela, a Moça. E também ele se encontra ante las puertas del templo / do recibe el sacrifício... Ao colocar na acção os Siete gozos de amor, Gil Vicente evoca a situação de um frade franciscano às portas do Templo, podemos, portanto, ler nisso não apenas a sua motivação mas ainda a sua intenção de vestir o Velho com as vestes do Papa, o que na altura da primeira representação terá acontecido.
        No desenrolar da acção vemos que o Velho, além de apto na música e canto, nos informa que ainda há de vir a fazer trovas, pois também ele, como Mancias, por isso deseja morrer...
        A poesia vai voltar a estar presente na acção, depois, no diálogo com a Alcoviteira — onde são glosados alguns versos de Mancias, — evidenciando a acção que, como o poeta eterno enamorado, também o Velho prevê para si um destino semelhante, e que, como ele foi sepultado assim deseja que a Alcoviteira o una com a Moça. 
       (...)
       A peripécia deve surgir como surpresa e fazer sentir o temor que a pouco e pouco se vai esmorecendo pela intervenção cada vez mais firme da Alcoviteira.
       E por fim na parte final, no êxodo, apresenta-se a fantasia com todo o esplendor. Começa por ser semelhante ao início da peça, mas transforma-se com a aproximação das personagens da fonte tão esmerada, onde a vidente (Mocinha) vai ler o futuro.
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

eBookseBooks
O Teatro de Gil Vicente
GrammarNet