O quadro acima e os textos seguintes foram publicados (Março de 2014) em:
Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(c) Noémio Ramos
Colocando em cena a História, Gil Vicente organizador de jogos, festas, cortejos, etc., mostra-nos o seu sucesso na Corte Portuguesa, apresenta-se neste auto por ele mesmo, como autor e actor, caracterizando-se como o ideal cortesão, glosando versos famosos, dirigindo e inventando jogos, organizando festejos, dissertando sobre a ideologia da época, a religião e sua filosofia, bailando, etc.. E na ficção em causa, como personagem profetizada, profetiza o seu próprio sucesso no sucesso da personagem da ficção, onde também na ficção, a personagem questiona a profecia do sucesso, e de tal modo que tudo se passa assim figurado, na peça de teatro como na vida real se irá passar, concretizando a profecia: um Gil com a mesma origem, exercendo as mesmas funções, fazendo e cumprindo a mesma actividade, na ficção como na realidade. É um caso muito especial, na história do teatro. Realidade e ficção ocupam o mesmo espaço, o mesmo tempo, e quase que a mesma acção.
(...)
Concentremo-nos então na descrição da peça: o Auto centra-se, em toda a sua acção dramática, na figura de Gil Terrón que, de início, se caracteriza sumariamente. Gil apresenta-se como um pastor melancólico, numa atitude reflexiva e nostálgica sobre um passado recente. Reflecte sobre o seu futuro e, inclinado à vida contemplativa, tempos antes do seu sucesso (Visitação) encontrava-se distanciado da convivência social da Corte, mas mesmo afastado, organizava jogos e folias. Constitui no Auto uma auto-avaliação de Vicente que, com a organização de jogos e simples divertimentos, não encontra para si grande futuro, até ao momento em que surge o Anjo (o príncipe João) e tudo muda, quando, ele próprio, e de imediato, toma a iniciativa de organizar uma festa diferente para celebrar o seu nascimento. A festa obteve grande sucesso e Gil Terrón terá um futuro brilhante à sua frente, isso mesmo lhe promete Lucas.
A caracterização de Gil Terrón vai adquirindo maior definição com o decorrer da peça, contudo, além dos aspectos de carácter psicológico, foram-lhe atribuídos um modo de pensar, ideias próprias e conhecimentos vastos, e ainda, um sentir e agir apropriados ao desempenho das suas funções. No início, a solidão da figura é, na aparência, social, todavia, com o prosseguir da acção, verifica-se que – o autor assim o quis definir – o seu isolamento é muito mais de ordem cultural e intelectual.
(...)