E pera declaração
desta obra santa et cetra...,
quisera dizer quem são
as figuras que virão
por se entender bem a letra.
                                            Gil Vicente
  ... em  Romagem dos Agravados.
Gil Vicente
   Renascença e Reforma - Líderes políticos e ideólogos - Ideologia e História da Europa
Online desde 2008 - Investigação actualizada sobre as obras de Gil Vicente.
Retórica e Drama - Arte e Dialéctica
Teatro 1502-1536
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Sobre o "Auto Pastoril Castelhano"
...antes da apresentação da análise da peça, o que dissemos em 2008

Julho de 2008, Noémio Ramos

Texto publicado em Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...
Livro publicado para comemorar os seus 500 anos (Alma).


         Os ideais renascentistas do século xvi, representam a Virgem como uma Vénus, tal como surge representada nos quadros dos melhores pintores da época, uma Virgem comparável com a representação da Primavera (1482-1490) de Botticelli, uma virgem integrada e enaltecida pela verdura florida e por todas as forças da natureza, mas mais ainda em Vicente, de odor vivo e perfumado, uma voz suave que soa como música aos seus ouvidos, uma doçura imensa que se apodera de todos os seus sentidos. Assim, mas melhor ainda no poema, no texto do auto que a descreve, ela está de tal modo que, no próprio Deus nasce o desejo de a possuir e dela nascer (da sua filha, esposa e mãe), en quien Dios venir desea.

              ... a escolha do cântico de Salomão é significativa.
Pois se não fosse a referência concreta de Gil, a Salomão, e ao cântico específico, podíamos supor que ele estaria descrevendo a Primavera de Botticelli.

        
Como el lilio plantada / florecido entre espinos / como los olores finos / muy suave eres hallada. / Tú eres huerta cerrada / en quien Dios venir desea.
     A imagem da Virgem (e o menino) apresentada e descrita por Gil Vicente no Pastoril Castelhano, está já muito dentro do século xvi, como é fácil de verificar se compararmos a descrição dada e conotada com o cantar de Salomão, como sublinha Vicente, a uma Virgem figurada também na época em muitas das representações pictóricas. Pela sua forma, como pela sensualidade que inspira, esta Virgem de Gil Vicente, parece-nos mais avançada pela Renascença que a Sagrada Família (1503) de Miguel Ângelo, ou A Virgem e o Menino com Santa Ana (1510) de Leonardo, ou ainda a Madona com São Jerónimo (1522) de Correggio, senão mesmo, que outras pinturas mais sensuais ou eróticas deste pintor.

     As estrofes de Vicente que se seguem, assim como os cantares de Salomão são textos profanos, e valores profanos aplicados à virgindade sagrada, tal como fizeram os artistas durante toda a Renascença.
    Não nos parece que se possa confundir este poema com algo de medieval.

     Assim, também juntando mais este pormenor a todas as outras questões, não nos parece que este teatro possa ter origem em representações religiosas de carácter medieval, nem percebemos como tal se pode imaginar! A Virgem de Gil Vicente, exala uma sensualidade tal que, repetimos, provoca em (Salomão) Deus, o desejo de a possuir e dela nascer:

    en quien Dios venir desea.
  Como Gil Terrón diz: 

 
[Salomão]
  Con su voz muy deseosa
  en su canticar decía:

  llevántate amiga mía
  columba mea fermosa.
 
  Amiga mi olorosa
  tu voz suene en mis oídos
  que es muy dulce a mis sentidos
  y tu cara muy graciosa.
 
  Como el lilio plantada
  florecido entre espinos
  como los olores finos
  muy suave eres hallada.
 
  Tú eres huerta cerrada
  en quien Dios venir desea
  tota pulchra amica mea
  flor de virgindad sagrada.

        O seu amigo Silvestre delira de satisfação, era uma faceta de Gil que desconhecia e - que, como podemos ver pela resposta de Gil Terrón, era uma faceta que não existia até então - exclama de admiração:

       Ah Dios, plaga con el roín…,
      mudando vas la peleja,
      sabes de achaque de Igreja?

 
   pelo sentido: achaque de Igreja = lamúrias de Igreja

       Gil Terrón esclarece de imediato, que as questões de Igreja e religião as aprendeu agora mesmo, para escrever este Auto:

       Ahora lo deprendí.

      E se muda a peleja, é porque tem de corresponder aos desejos do empregador, mas não quer dizer que não continue a expor o que pensa, construindo as suas figurações da realidade.
   (...)
O quadro acima e os textos seguintes foram publicados (Março de 2014) em:

Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(c) Noémio Ramos

      Colocando em cena a História, Gil Vicente organizador de jogos, festas, cortejos, etc., mostra-nos o seu sucesso na Corte Portuguesa, apresenta-se neste auto por ele mesmo, como autor e actor, caracterizando-se como o ideal cortesão, glosando versos famosos, dirigindo e inventando jogos, organizando festejos, dissertando sobre a ideologia da época, a religião e sua filosofia, bailando, etc.. E na ficção em causa, como personagem profetizada, profetiza o seu próprio sucesso no sucesso da personagem da ficção, onde também na ficção, a personagem questiona a profecia do sucesso, e de tal modo que tudo se passa assim figurado, na peça de teatro como na vida real se irá passar, concretizando a profecia: um Gil com a mesma origem, exercendo as mesmas funções, fazendo e cumprindo a mesma actividade, na ficção como na realidade. É um caso muito especial, na história do teatro. Realidade e ficção ocupam o mesmo espaço, o mesmo tempo, e quase que a mesma acção.
     (...)

      Concentremo-nos então na descrição da peça: o Auto centra-se, em toda a sua acção dramática, na figura de Gil Terrón que, de início, se caracteriza sumariamente. Gil apresenta-se como um pastor melancólico, numa atitude reflexiva e nostálgica sobre um passado recente. Reflecte sobre o seu futuro e, inclinado à vida contemplativa, tempos antes do seu sucesso (Visitação) encontrava-se distanciado da convivência social da Corte, mas mesmo afastado, organizava jogos e folias. Constitui no Auto uma auto-avaliação de Vicente que, com a organização de jogos e simples divertimentos, não encontra para si grande futuro, até ao momento em que surge o Anjo (o príncipe João) e tudo muda, quando, ele próprio, e de imediato, toma a iniciativa de organizar uma festa diferente para celebrar o seu nascimento. A festa obteve grande sucesso e Gil Terrón terá um futuro brilhante à sua frente, isso mesmo lhe promete Lucas.
       A caracterização de Gil Terrón vai adquirindo maior definição com o decorrer da peça, contudo, além dos aspectos de carácter psicológico, foram-lhe atribuídos um modo de pensar, ideias próprias e conhecimentos vastos, e ainda, um sentir e agir apropriados ao desempenho das suas funções. No início, a solidão da figura é, na aparência, social, todavia, com o prosseguir da acção, verifica-se que – o autor assim o quis definir – o seu isolamento é muito mais de ordem cultural e intelectual.
      (...)
       Figurando-se no protagonista, o autor apresenta de início a sua desdita pelo infortúnio derivado da perda (por morte) de el-rei João II (João Domado que era pastor de pastores) e pela dispersão da sua Corte (o seu curral). Esta situação, caracterizada de infortúnio – que mantém um certo isolamento dos convivas – multiplica-se pela insatisfação do protagonista com a situação do curral do seu novo pastor (o sucessor de el-rei), a quem não quer mal. A situação complica-se pelo seu espírito crítico, mais quando é chamado a organizar os convívios ao serão para divertimento do seu pastor e, mais ainda, com os insucessos do seu novo pastor nos jogos propostos e por si organizados. A desdita do protagonista vai resolver-se com o desenlace dos nós da trama tecida na sequência dos vários episódios da primeira parte, a partir do momento da reviravolta, na segunda parte, através de uma organizada resposta – porque muito bem sucedida – ao acontecimento que anuncia (a “peripécia”) o nascimento do salvador (príncipe João / Messias), e assim, também, pelo desenvolvimento que o protagonista impôs ao assumir a direcção das actividades, com a introdução da sua Visitação (espectáculo, cortejo, música e bailado) com outros pastores ao nascimento do redentor (Paço real / Presépio), a cousa nova, a representação da peça criada para celebrar o evento salvador (da nação / da cristandade), desde logo, expressão concretizada num novo teatro, com espectáculo e texto inteligível – arte moderna, renascentista – e depois, do reconhecimento do mythos, e de isso mesmo, da sua lírica, erudição e arte retórica, pela avaliação e explicação dos conteúdos e significados do objecto da sua resposta. Em conclusão, uma resposta que permitiu ao herói passar por uma série de etapas, indo da desdita à felicidade (Aristóteles). E, lembramos, o reconhecimento último, que foi todo o “isto mesmo” – representado às matinas do Natal – endereçado ao nascimento do redentor... Porém, porque a substância era mui desviada, em lugar disto, fez a seguinte obra: Pastoril Castelhano, celebrando-se então, na acção dramática da peça, a sua glória pelo êxito alcançado com os objectos criados, e pela sua actuação na Corte de el-rei Manuel I, o rei europeu que, na passagem do século, anunciou à Europa o verdadeiro caminho para chegar à Índia por mar.
      Contudo, esta peça parece-nos mais uma comédia, pois, em termos de concepção e criação, a peça concretiza-se também por uma sátira política, onde Lucas, a figura do governante, que veste a figura do novo pastor de pastores, com o seu curral, estando caracterizado pelo seu pior chega mesmo a ser ridicularizado na sua caricatura. Mas, sem ensaiarmos uma experiência da encenação desta peça, muitos pormenores importantes certamente nos escapam.
      (...)
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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