A História de que falamos, é a que define Aristóteles na Poética (1451b), é essa que Gil Vicente entendeu oferecer-nos com os seus Autos. Ele é um poeta no sentido dado pelo filósofo da Poética, quando diz que: A distinção entre o historiador e o poeta não está no facto de um escrever em prosa e o outro em verso; podemos transferir para verso a obra de Herodoto, e ela continuará pertencendo à disciplina de história. A diferença reside em que, um relata os factos sucedidos, e o outro inventa o sucedido, pelo que podia ou devia suceder. Daí que a poesia, [a Arte] seja mais filosófica [tal como na visão dialéctica de Platão] e de maior dignidade que a história, posto que as suas proposições são mais do tipo universal, enquanto que as da história são apenas particulares. E Gil Vicente é pela Comédia, com as técnicas da tragédia bem presentes nas suas obras, pela comédia, porque pelo facto de as coisas terem acontecido [os factos históricos já sucedidos], torna-se evidente que eram possíveis de suceder, pois não teriam ocorrido se fossem impossíveis (...), assim não é necessário que se limite às histórias tradicionais como na tragédia.
[p.216-217, Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... de Noémio Ramos]
Tragicomédia terá sido, porventura, uma designação para as obras que, como as de Gil Vicente, incluíam numa mesma figura os homens melhores (superiores ao que são - tragédia) e os piores (inferiores ao que são, ridículos - comédia), tal como Aristóteles havia considerado na Poética (1448ab): a comédia é uma figuração (prefiguração na linguagem de Gil Vicente), de caracteres inferiores em toda a sua vileza mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cómica é feia e deformada mas não exprime dor. Pois são sobretudo as técnicas da tragédia (serão da comédia) que vemos utilizadas nos seus autos: (1) a acção dramática, pela concepção do mythos (na História); (2) os caracteres com múltipla caracterização das personalidades e alegorias; (3) o pensamento das figuras e as ideologias; (4) a elocução e a dicção; (5) a melodia e ritmo da fala e dos cantos; e (6) o espectáculo, cenários, figurinos, música, dança, cortejos, etc..
No início um prólogo, como em Quatro Tempos (Serafim), Alma (Agostinho), etc., depois, os episódios muito bem coordenados para nos transmitir (por clarividência) o mythos, com os seus conflitos, peripécias, o recordar e os reconhecimentos, as reviravoltas, os desenlaces... Por fim, o êxodo, em cortejo ou apoteose.
Parece-nos que estes seis pontos de Aristóteles, na sua essência, e com os outros pormenores - coerência e sentido do texto, metáforas, enigmas, profecias, etc., - são uma síntese racional (e por isso reduzida) dos preceitos definidos na hiponóia do Íon quanto à técnica da poética de Homero e à técnica de Platão.
[p.216-217, Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... de Noémio Ramos]
Os mais destacados protagonistas políticos na Europa no tempo mais produtivo de Gil Vicente, são Carlos de Habsburgo (Carlos I de Espanha, imperador Carlos V), Francisco de Valois (Francisco I de França), Fernando de Habsburgo (Arquiduque de Áustria) o Papa Clemente VII (Júlio de Medici) e Henrique VIII de Inglaterra. Mas também devemos lembrar Solimão 'o Magnifico' pois em algumas das últimas peças sente-se a sua referida e oculta presença.
Carlos de Habsburgo, rei de Espanha
e Imperador do Sacro Império, etc...
Solimão 'O Magnifico'