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Sobre a peça "Diálogo de uns judeus sobre a Ressurreição..."
O texto desta página, de Noémio Ramos, encontra-se neste livro.
Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II,
Pub. Agosto 2010 - isbn - 978-972-990004-4

Sobre o Diálogo...   [p.225-227]
        Esta apresentação deste Auto é apenas uma antecipação a uma análise mais profunda.
      
        Integrada no livro sobre o Auto da Alma, teve por finalidade mostrar a relação  dos autos de Gil Vicente com a História da Europa do seu tempo.
Os Judeus figuram os Senhores da Igreja
Cardeal Rovera
Cardeal
Francesco della Rovera
Cardeal
Pompeo Colonna
Papa Clemente VII
Papa Clemente VII
Júlio de Medici
Os Centúrios figuram os reis aliados do Papa na guerra contra o Imperador Carlos V
Franc1er de France
Francisco I,
rei de França
Henry VIII
Henrique VIII,
rei de Inglaterra

        O Diálogo de uns judeus sobre a Ressurreição, é um auto onde o primeiro dos judeus em cena, Levi, é uma figuração de um dos comandantes militares da Igreja de Roma, o Cardeal Francesco della Rovera que lutou a favor do Papa Clemente VII aliado aos franceses, reconhecível pelos lamentos no início do auto, e o outro judeu, Samuel, o Cardeal Pompeu Colonna, que lutou a favor do imperador.
        Os centúrios são: um Francisco I, ferido na face (maxilar) e no braço durante uma das guerras anteriores; e o outro, Henrique VIII, sem unhas para fazer um descendente macho, razão pela qual queria a anulação do seu casamento com Catarina de Aragão. Quanto ao superior dos judeus, o Aroz, é o Papa Clemente VII, que já antes tinha sido libertado, e com o acordo entre Carlos V e os banqueiros italianos se vê agora colocado perante a libertação da Igreja do Castelo de Sant’Ângelo (a Ressurreição), e portanto pretende disfarçar a situação. O problema destes judeus está nos negócios da Igreja, no dinheiro e nos territórios do Estado Pontifício.  

        Na transcrição a seguir, Gil Vicente, por Levi, descreve a guerra anterior desde que Francisco I se considerou com direito sobre domínios em Itália, e como enfrentou Carlos V após ser libertado em Madrid dois anos antes, e que, o segundo centúrio, Henrique VIII, vendo-o em tal embaraço, foi e quis ajudar, mas tropeçou, deu com os focinhos num ferro de arado e quebrou os dentes, unhas e tudo...
Centúrio:   Pois que diremos que foi este mal
              ou que remédio a nossa fortuna?

    Levi:     Dirás que arrendaste na sisa dos panos,
              ou nos azeites do Aver do Peso,
              e que arrepelaste um homem travesso 
              sobre razões haverá dois anos.

              E que, agora te arrepelou,
              e mais, que te estortegou esse braço...
              E estoutro, vendo-te em tal embaraço,
              por te acudir, que foi e empeçou. 

              E deu c’os focinhos num ferro de arado
               e quebrou os dentes, unhas e todo...
              E assi em todo ponde-vos de lodo
              do chanto e da guaia, todo misturado.

Samuel:     Entendeis aquilo, homem de bem? 
              Toma um vintém pera a cabeleira...
              Tu come das papas, nam terás denteira,
              e compra umas luvas ou furta-as alguém.
        Como é habitual nos autos de Gil Vicente todos os pormenores são importantes, tudo tem um sentido que figura um qualquer facto real. Não cabe aqui toda a descrição, mas por exemplo, o facto do Centúrio II, Henrique VIII, não poder ter por agora um descendente varão, com a vitória de Carlos V tornou-se uma realidade, pois será impossível obter do Papa a anulação do seu casamento, ficando sem unhas para fazer prol, expressão que surge na descrição que Levi faz a Aroz.

...Levi:      Uns, ficam pelados,
              outros, sem dentes e braços quebrados,
              outros sem unhas pera fazer prol,
              e todos o viram fora do lançol 
              sair do penedo, todos acordados,
              em saindo o sol.


       Uma das questões fundamentais para a Igreja, após a derrota das pretensões do Papa Clemente VII, era a conservação dos vários domínios territoriais do Estado Pontifício, e para o Papa, um Medici, era de fundamental importância a questão pessoal dos domínios italianos da sua família, nomeadamente Florença, que antes da guerra era um dos Estados aliados do Papa. Todavia, durante o conflito, Florença havia declarado a República e expulsado os Medici. Nem o Papa, nem o Imperador Carlos V, lhe detêm o controlo. No acordo celebrado o imperador compromete-se a entregar Florença aos Medici, mas a situação no terreno é complicada.
       Cristo, o Messias, é aqui neste auto Carlos V, e o foral é o Senhorio de Florença, entretanto com o “foral”, uma República. De momento o imperador mantém ainda o cerco a Florença, a guerra a Florença vai durar ainda alguns meses.


   Aroz:     Meu pai arrendou umas alcaçarias
              junto do termo de Vila Real,
              com tal condição, que durasse o foral
              atés que viesse o nosso Mexias.

               Ora me escutai:
               juro pola alma que foi de meu pai
               que está a cousa bem embaraçada
               estai ambos quedos nam boquejeis nada 
               nam fale ninguém vereis como vai
               esta emburilhada.


       Segue-se a esta embrulhada da questão pessoal sobre a República de Florença, a preocupação do Papa com os Estados da Igreja, pois estava em causa a sua permanência nas mãos da Igreja, e talvez a própria existência de um Estado da Igreja. De um modo muito simples e resumido, podemos dizer que a questão, um dos aspectos do erasmismo, se vinha discutindo nos meios imperiais desde que Clemente VII se aliou com os franceses para expulsar os espanhóis de Itália.
        Este auto também foi muito censurado, e os versos retirados podiam ter referências mais evidentes ou apenas expressões mais complexas, que a ignorância dos censores resolveu cortar danificando a obra.
       Todavia, embora o auto seja pequeno, não é este o lugar apropriado a uma informação mais completa, além disso o seu mythos só fica concluído com a peça anterior. Deixamos ao leitor o gozo da sua leitura completa e da sua descoberta. Aqui ficam os três últimos enlaces do Auto, que são significativos em relação ao modo como o autor avaliou o comportamento da hierarquia da Igreja no momento.

    Aroz:     Pois que faremos sobre isto em tanto? 
     Levi:     Que nos calemos em nosso calado
               quem quer que dixer que é ressuscitado
               dar-lhe-ei uma figa debaixo do manto.

               E leixai estar
               que seja verdade, calar e negar. 
               Ter mão na sinagoga, que nos dá repairo,
               que sabendo o povo é nosso o fadairo,
               e se o aventar,
               cada sacerdote lhe compre studar
               pera boticairo. 

               Tenhamos todos mui bem que comer
               que farte e sobeje pera todo o ano, 
               tratemos em cousas em que caiba engano,
               e se nos perdermos, nam pode mais ser.

   Aroz:      Sabes que receo? 
               O mal que fezémos é crime tão feo
               que já Jeremias nos chorou primeiro.
    Levi:      Fundemo-nos todos em haver dinheiro
               porque, quer seja nosso, quer seja alheo,
               é Deu verdadeiro. 

               E ter mão na burra. Que dizeis Aroz?
   Aroz:      Façamos Tamuld com tantas patranhas
               com que embaracemos tamanhas façanhas,
               antes que metam a frota na foz.

                E por simular,
                ordenemos festa com algum cantar
                por que nam entendam que somos vencidos,
                chacota na mão, fender os ouvidos
                a quem nos ouvir. Alto começar
                a travar dos vestidos e cabecear. 


- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos:

(2019)  - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória.
(2018)  - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1.
(2017)  - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço.
(2017)  - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor.
(2017)  - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger).
(2017)  - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei.
(2017)  - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei.
(2017)  - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia.
(2017)  - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela.
(2017)  - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos.
(2015)  - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis.
(2014)  - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502.
(2013)  - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515.
(2012)  - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra.
(2012)  - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota.
(2010)  - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia.
             - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" 
(2ª Edição, 2017)
(2010)  - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura".
(2010)  - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens.
(2008)  - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão.
             - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... 
(2ª Edição, 2012)
(2008)  - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...

- Outras publicações:
(2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares.
(2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.

  (c) 2008 - Sítio dedicado ao Teatro de Gil Vicente - actualizado com o progresso nas investigações.

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