O texto desta página, de Noémio Ramos, encontra-se no livro. Gil Vicente, Tragédia de Liberata. Do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra. Pub. Março de 2012 - isbn - 978-989-977490-2
O Templo de Apolo
As notícias mais concretas, da guerra dos camponeses na Alemanha, devem ter chegado a Portugal ainda durante o Verão de 1525, contudo, tendo em conta que devem ter chegado notícias diversas, de fontes e origens diferentes, e em versões distintas, só devemos aceitar como estabelecida uma ideia melhor ou mais bem definida dos acontecimentos para o Outono desse ano. Nessa altura Gil Vicente terá, pelo menos, uma peça concluída (em ensaio) e em vias de representação e uma outra, numa fase de criação ou já em elaboração. Assim, naquela altura, estará a ser elaborada a peça O Templo de Apolo, que será representada à partida de Isabel de Portugal para Espanha a fim de casar com o imperador Carlos.
Pela reacção que encontramos nas suas obras, os acontecimentos na Alemanha tiveram um impacto muito grande em Gil Vicente, ele terá sentido profundamente a frustração e os martírios do desfecho das revoltas dos camponeses e, quem sabe, terá ficado emocionado e desmoralizado com a actuação da nobreza. Esses sentimentos foram então por ele idealizados e concretizados em termos figurativos, dizendo que adoeceu: ardendo em febre contínua / em estes dias passados. E assim, ainda com a emoção à flor da pele, ele expõe no início do Auto do Templo de Apolo, o seu sonho febril. É o próprio Autor quem fala e descreve, dando forma a um desejo que nunca se satisfaz no seu sonho. O Autor está lá (vivendo) com os camponeses da Alemanha, naqueles dias passados, a morte posta a meus lados, dizendo-me: anda, anda que teus dias são chegados. Então, sonhando-se camponês morto, o Autor vê as imagens daquelas famosas figuras, as formosas, que neste mundo lia, e o que vê, descreve-nos tal qual via: é a vida mais comum dos camponeses, figurada em acções vulgares da vida do povo mais simples, resolvida em torno de episódios distintos do mundo cultural da sua época, mas sem que o sonhador atinja a satisfação do desejo - assim como em qualquer sonho interrompido antes de alcançar um clímax, - perante as acções mais comuns da vida rural, pelas figuras mais belas,que neste mundo lia. Figuras que, num sonho, ao sonhador são gente. São figuras bíblicas e são figuras da cultura grega e romana, todas elas conforme estão nos livros que neste mundo lia. Tendo entre mãos uma encomenda tão importante como a peça a apresentar à partida de Isabel de Portugal - a criação talvez já idealizada de Templo de Apolo - e talvez em parte já concretizada, Gil Vicente adapta-a e submete a peça ao seu desígnio, à direcção, e aos objectivos a que submeteu toda a sua obra dramática: figurar a História da Europa na sua própria actualidade. Foi uma adaptação pragmática, feita de modo a não alterar o âmago aparente da peça: uma exaltação do poder e ambições do imperador, em contraste com o elogio das virtudes da futura imperatriz, figurados nos quatro casais de romeiros, como alegorias ao carácter de Carlos e de Isabel. Neste aspecto é de salientar o respeito do autor pela princesa Isabel e os largos elogios ao seu carácter.
O sentido do Templo de Apolo Contudo o mythos da peça, como sempre nas obras de Gil Vicente, foge às aparências. Em 1525 o rei de França está preso em Madrid, os tempos (Tempo Glorioso) são favoráveis ao imperador, que pretende dominar a Europa (Ceptro Omnipotente) e a Igreja de Roma, fazer crescer o Império e, ainda, ir (plus ultra) mais além (um Mundo só não lhe chega). De momento, o Papa perdeu os seus principais aliados na guerra em curso contra o imperador, e Carlos V aproveitando a parca vitória militar de Pavia (Poderoso Vencimento), em Fevereiro de 1525, intensifica a sua já organizada campanha de propaganda ideológica contra Clemente VII e o Estado Papal, fazendo uso de uma ideologia que não é a sua, mas que, perante a opinião geral na Europa e a situação política e económica, melhor serve os objectivos do imperador. São as ideias até então publicadas por Erasmo de Roterdão reformuladas no erasmismo espanhol que rebusca os conceitos chave em formalismos e propostas de objectivos imediatos, bem como pelas obras de Erasmo que, após traduzidas, voltam a ser divulgadas por toda a Europa, de modo a orientar e conduzir a opinião pública europeia, e depois o Papa, à vontade política e económica da Corte imperial, querendo sobretudo obrigar a Igreja e o seu Estado a regressar aos banqueiros alemães (Fugger). Perante esta situação, a caracterização de Carlos V em Templo de Apolo, com as quatro alegorias que o figuram, constituem o que há de mais oposto às doutrinas publicadas de Erasmo, - MUNDO plus ultra, TEMPO GLORIOSO, CEPTRO OMNIPOTENTE e PODEROSO VENCIMENTO, - contrastando assim o erasmismo espanhol propagandeado pelo poder imperial, com Erasmo e com a realidade mais nua daquilo com que o imperador se mostra na realidade. Este contraste é ainda agravado e sublinhado pelo facto de as outras quatro alegorias, que caracterizam Isabel de Portugal, corresponderem quase exactamente às doutrinas de Erasmo: FLOR DE GENTILEZA, VIRTUOSA FAMA, PRUDENTE GRAVIDADE e HONESTA SABEDORIA. Contudo, o sentido mais importante desta peça é dado pela sua forma global, que se lê pela concepção do mythos a partir da sua forma aparente, um Templo para Apolo, criado como uma figuração da nova Basílica de São Pedro, para uma perspectiva da religião concebida pelo Império, reformulando a Igreja de Roma. Na criação de Gil Vicente, supostamente um Templo segundo o imperador Carlos V, para um deus que está ao seu serviço, o deus Apolo, pois retornando ao que já dissemos no início, conclui-se no que anos mais tarde João de Barros escreverá: Os príncipes da terra foram os deuses dela e esses o são agora. (em 1532, Ropicapnefma, João de Barros).
(...) Atente-se que, ao contrário do que se pode ler nas palavras de Apolo, a intervenção do Autor é completamente agnóstica, nas suas palavras não se distingue qualquer tomada de posição em relação à religião ou ao Clero, a não ser no objecto cultural que constituíam os episódios bíblicos, pois no contexto do discurso, nas referências às personagens do seu sonho, os episódios bíblicos são incluídos, todavia, apenas tratando a Bíblia como qualquer outra obra histórico-mitológica, uma obra literária, como diz o autor, as que neste mundo lia, tal qual como são incluídas no mesmo discurso as referências às obras de Homero ou de Virgílio. Gil Vicente, no discurso do Autor, dá exactamente o mesmo tratamento aos textos (às memória culturais) que suportam o seu trabalho, quer eles sejam bíblicos, quer gregos, quer romanos.
(...) Na intervenção do Autor Na sua intervenção a personagem Autor realiza um discurso que reúne sobretudo três questões: (1) as recomendações, conselhos e alertas a Isabel sobre a actividade das esposas, e de outras mulheres próximas de homens políticos poderosos que, por sedução amorosa ou por quaisquer outras formas, os influenciaram e os conduziram a modificar o curso dos acontecimentos sociais e políticos do seu tempo, ou que de alguma maneira foram vítimas disso; (2) a dor e a morte solidária, sentidas pelo autor, com o decorrer e com o desfecho da guerra dos camponeses da Alemanha, que corta e impede a consumação dos seus desejos e anseios por uma melhor e mais justa partilha do poder político, por uma participação efectiva do povo nas decisões políticas; e (3) assim, com o parvo atado ao pé, correndo o risco de tudo vir a perder com as suas emoções, colocando até a sua própria vida em risco, a exigência da necessidade absoluta de camuflar o seu sentir e pensar sobre as questões políticas e ideológicas envolvidas na guerra dos camponeses. Para concretizar a reunião destes objectivos Gil Vicente cria a figura do Autor, ardendo em febre delirante, febre de tal modo grave que sonha com a morte ao seu lado chamando por si, e depois de morto (camponês morto) junto dos outros mortos, descrevendo a visão do seu sonho - a sua visão de sonho, bem construída com os mecanismos psicológicos do sonho, - preenchendo o enredo com aquilo que pelo que no mundo leu da história-mitológica dos povos, tendo por protagonistas as figuras de mulher que, de alguma forma, junto do poder político, tiveram uma intervenção importante no desenrolar dos acontecimentos de cada episódio, causando alguma alteração na sua corrente, ou mesmo mudando o seu curso previsível. Contudo, tudo isto com o Autor (morto por simpatia) sonhando percorrer os tempos passados naqueles trechos de cada episódio e, em cada momento (histórico), estar ali presente para satisfazer o seu desejo como parceiro daquelas formosas figuras de mulher, mas onde todas elas como ele próprio são gente - gente do povo na visão do seu sonho - em diferentes actividades das mais comuns da vida rural, de trabalho no campo ou oficinal, e o seu sonho decorrendo sempre num ambiente próprio de camponeses. Gil Vicente realizou uma intervenção directa (o Autor) em Templo de Apolo, com o seu espírito ausente, expondo o impacto de dor e de luto que tiveram em si próprio os massacres das populações na guerra dos camponeses, - el spírito mío ausente / y pues la obra es doliente - construindo o registo do seu pensamento sobre o assunto em questão, em partes distintas da peça, pois para além da intervenção no texto das falas do Romeiro e de Apolo a que já nos referimos, também há outras intervenções com o mesmo sentido no texto do Vilão, e tudo isso feito (introduzido) após a concepção global e inicial do drama. E talvez daí a sua justificação de a peça poder apresentar menor qualidade: Dende aquesta callentura / maldito el seso que yo tengo / y la obra con que vengo / es de tan alta dulzura / como yo crecí por luengo. (…)
Na primeira parte, no prólogo, antes de apresentar o argumento, constrói uma figuração do sentimento de si próprio, pelas aspirações, ideais e desejos, em simpatia com o sofrimento dos camponeses, por isso está de luto, dolente, ardendo em febre e sonhando-se morto, mas morto entre os heróis que lutam pelos seus povos, e por isso, são aquelas figuras de mulher, e só aquelas, as mais belas que neste mundo lia, que são objecto do seu sonho; assim, será o Autor no seu ser mais íntimo quem fala, pelos seus desejos mais secretos, pelos seus sonhos. (…)
Sobre os versos da figura do Autor, porque é um discurso muito rico em informação sobre o próprio Gil Vicente, o seu ser, saber, motivações e sentimentos, devemos acrescentar ainda algumas palavras, a juntar àquelas que, sobre o mesmo assunto, escrevemos antes. Se nos abstivermos da sequência organizada das figuras que se sucedem no sonho, obedecendo a uma organização lógica, a construção do objecto do sonho é de quem conhece algo dos seus mecanismos psicológicos. Nesse sonho, nos seus aspectos eróticos, o sonhador, sem que seja esse o objectivo e sem isso ter na ideia - como num sonho, - (sem enfastiadas repetições) aproxima-se em alguns momentos da satisfação do desejo, e mais explicitamente em: (eu vi) Raquel guardando seu gado (…) /y cuando la oí tocar / presomí de la abrazar…, (sempre sonhando) todavia, por alguma intervenção das figuras do sonho nunca se vem a concretizar a satisfação do desejo, que sempre lhe foge, que lhe cortam a proximidade, como no caso de Raquel: y ella llamó por Jacob / que era ido a vendimiar… Logo recomeçando tudo de novo noutro episódio com uma outra formosa figura. Assim, o sonho nunca chega a um bom termo, não se realiza, não se concretiza como satisfação do desejo. Ora, é exactamente esta ideia do acto não consumado - sonho constantemente interrompido, o desejo num sonho que não se realiza no seu objectivo - que Gil Vicente quis dar com este seu discurso. Pois, uma vitória dos camponeses em nenhum tempo histórico chegou a bom termo. A sequência organizada das figuras que neste mundo lia corresponde a uma ordem algo cronológica presente na época, primeiro pela Bíblia e, depois, pela cultura clássica, grega e romana. Como diz o Autor, fez a selecção das mais formosas, contudo verifica-se que as figuras são as mulheres que no mundo cultural, tiveram alguma intervenção directa ou indirecta na vida dos povos, começando por Eva a mãe de todos, e logo depois, aquelas que contribuiram de alguma forma para a apropriação do Poder. Primeiro com a Bíblia, o mundo ou Templo de enganos: Bersabé (ou Betsabé) seduz David que a toma como amante, mandando assassinar o marido, requerendo ela mais tarde o poder do reino para o seu filho Salomão em detrimento do legítimo; Raquel seduz Jacob que, a partir de enganos sucessivos se apodera de quase tudo o que pertencera a seu sogro, enriquece e abandona-o fundando Israel e as suas doze tribos; a rainha Ester que salva o povo judeu por uma estratégia de enganos, conduzindo o rei Persa a autorizar os judeus a uma matança sistemática de todos os seus inimigos na Pérsia, desde a Índia à Etiópia. Prossegue então com a cultura grega e romana, que resumimos: Medeia, mundo persa e grego; Helena, mundo grego e troiano; e Dido, mundo troiano, fenício e cartaginês, que após criar Cartago se enamora do troiano Eneias, que a abandona à morte e a uma destruição completa levada a cabo pelo mundo romano que em si, em Eneias, terá origem. Nunca, com nenhuma destas mulheres (povos), apesar de algumas tentativas de aproximação, o camponês sonhador conseguiu consumar o acto no seu sonho e reproduzir o seu poder político. Esta sequência (mitológica, histórico-cultural) termina com a rainha Dido e, de seguida, o Autor dará entrada ao romano deus Apolo (filho de Júpiter). (…)
Concluímos então que: o sonho do Autor tem como suporte a sua vida posta ao lado dos camponeses, irmanada com a vida dos camponeses da Alemanha, no seu sonho de tomar parte no poder político e económico, fazer parte daquele conjunto de heróis idealizados (lendários) que conviveram com aquelas mulheres mais formosas que neste mundo lia. Pois, o sonhador quer estar com aquelas mulheres, porque, num sonho, as figuras são imagens de gente de carne e osso, o sonhador deseja-as. A vida daquelas figuras é a de qualquer mulher do campo, e o lugar da acção do sonho faz-se, pela transferência do contexto que é feita como em qualquer outra peça do autor, neste caso, do campesinato europeu da Alemanha para o campesinato português do Alentejo. Assim, a poética destes versos de Gil Vicente pode ser transcrita de uma forma deveras mais prosaica: Ainda sem o fogo nem água, nem sal, nem pão, já Eva cozinhava as migas na neve, mexendo-as de roldão para agradar a Adão seu homem; Bersabé, enquanto lavava a sua roupa na ribeira, tomava banho na água corrente e, enquanto a roupa secava ao sol, sentava-se a fiar e, enquanto isso, aparece David, o seu amante, amanhado de eremita, que vai ter com ela e dançam ambos nus; Raquel apascenta o seu gado pelos prados e, de quando em quando, toca a sua flauta, mas em geral encosta-se ao cajado para dormir, ao mesmo tempo que segura a bolsa (surrão) sobre o colo e, se acorda sarapantada, chama pelo marido; Ester cata e mata as pulgas na sua manta que está cheia de buracos, a qual tem preguiça de coser; Medeia anda em perseguição do seu homem que lhe fugiu e que se dedica a limpar chaminés em hospedarias (ou mansões) de outros; Helena de Tróia, a finória de rosto seráfico, vai correndo atrás de um porquinho fugido do seu lugar, e alerta Policena que vem de trabalhar no moinho, para que ela o agarre; Dido interpõe-se e consegue apanhar o porquito usando um cucharro de Eneias e, dirigindo-se a Helena, recomenda-lhe que se deixe de enredos e se case com um homem que lhe esteja presente e a sirva de facto. Assim esta obra, o Templo de Apolo, é dolente - y pues la obra es doliente - pois com o autor em estado febril, espírito ausente, esta obra é de dor e luto quando devia ser, e também é, de festa eloquente. E assim, pois, maldito o siso que eu tenho, / que esta obra com que venho, / é de tão alta doçura / como eu cresci em altura. (…) Como dissemos, o sonho do Autor em Templo de Apolo também se relaciona directamente com o conteúdo e significados próprios do momento político da peça. Assim, para além de tudo o que já expusemos, no contexto de Templo de Apolo devemos ainda destacar o que se relaciona com o casamento de Carlos e Isabel de Portugal, sobretudo pelos conselhos a Isabel, começando por lhe mostrar o desejo da mulher (Eva) em agradar ao homem, depois alertando tanto para o alcance do poder de sedução de uma esposa, como para o cuidado com outras mulheres sedutoras, ou ainda a necessidade de domínio da sedução com o fim de poder traçar estratégias conducentes a melhores ou mais justos objectivos; no mesmo contexto em que faz o traçado histórico-mitológico das lutas dos povos para alcançar a partilha do poder e a participação da mulher (e esposas), seja num mundo de amor, amizades e simpatias, seja num mundo de intrigas e enleios, vinganças, abandonos e traições, em que se poderão ver envolvidas as mulheres que estão mais próximas ao poder ou dos homens poderosos; mas também no mesmo contexto, indicando o dever da mulher em participar no mundo político do Poder, em aconselhar e alertar, seja ao esposo seja aos outros participantes do poder, ou mesmo a outras mulheres envolvidas com o poder.
Teniendo fiebre contina aquestos días pasados la muerte puesta a mis lados diciéndome: aína aína que tus días son llegados. Y tomado ansí entre puertas me pareció que moría y en después de muerto veía las hermosas que son muertas que en este mundo leía. Vi cada cual como estaba con toda su hermosura y con la gran callentura tan recio devaneaba que las vi desta hechura: la hermosa Eva hacía unas migas para Adán sin agua, ni sal, ni pan la nieve ge las cocía y mexíalas Roldán. Y Bersabé se lavaba lo presente y lo ausente en un arroyo corriente y de en medio de una fuente yo solo me la miraba. Ella sentóse a hilar desnuda sobre su baño y David hecho ermitaño salió con ella a bailar también sin palmo de paño. Vi andar después de aquella Raquel guardando ganado tan linda que su cayado era perdido por ella y el zurrón su enamorado. Una flauta le vi yo y cuando la oí tocar presomí de la abrazar y ella llamó por Jacob que era ido a vendimiar. Vi más a la reina Ester con su hermosura tanta matar pulgas en su manta que tenía por coser y ella hecha una santa. La muy lucida Medea hermosa sin división vi perguntar por Jasón puesto en una chaminea en el techo de un mesón. Vi la troyana Elena con su rosto serafino corriendo tras de un cochino y llamando a Policena que venía del molino. Acudió la reina Dido con un cucharro de Eneas diciendo: por qué te enlleas? Toma hombre por marido que de ventura lo veas. Dende aquesta callentura maldito el seso que yo tengo y la obra con que vengo es de tan alta dulzura como yo crecí por luengo. Hice todo en castellano el spírito mío ausente y pues la obra es doliente válgame el deseo sano que estuvo siempre presente.
Ardendo em febre contínua em estes dias passados, a morte posta a meus lados dizendo-me: anda, anda que teus dias são chegados. Tomado assim entre portas, pareceu-me que morria… Que depois de morto via as formosas que são mortas, as que neste mundo lia. Vi cada qual como estava, toda a sua perfeição. E com o grande febrão, tão depressa devaneava que eu as vi desta feição. A mui bela Eva fazia umas migas para Adão…, sem água, nem sal, nem pão. A neve a ela as cozia e mexia-as de roldão. Vi Bersabé se lavando, o presente e o ausente num veio de água corrente. E do meio duma nascente eu sozinho a contemplando. Ela sentou-se a fiar desnuda sobre o seu banho… David de ermitão manho saiu com ela a bailar também sem palmo de pano. Vi andar, depois de aquela, Raquel guardando seu gado, tão linda, que o seu cajado era perdido por ela... E o surrão seu namorado. Uma flauta lhe vi nela e quando a ouvi tocar presumi de a abraçar… Mas por Jacob chamou ela que era ido a vindimar. Vi mais à rainha Ester com sua beleza tanta, matar pulgas sobre a manta que ela tinha por coser… E ela feita uma santa! A mui lúcida Medeia, - formosa sem divisão,- vi perguntar por Jasão, posto em chaminé alheia no tecto duma mansão. Vi a troiana Helena de rosto mui belo e fino…, correndo atrás dum porquinho e chamando a Policena, que então vinha do moinho. Valeu-lhe a rainha Dido com um cucharro de Eneias dizendo: por que te enleias? Toma homem por marido e que de tal sorte o vejas. Desde que esta febre dura maldito o siso que eu tenho… Que esta obra com que venho, é de tão alta doçura como eu cresci em altura. Fiz portuguesa a dicção mas com meu espírito ausente…, assim, a obra é dolente… Valeu-me o desejo são que esteve sempre presente.
(…)
O nosso Estudo com a peça e a sua tradução em português
- Livros publicados no âmbito desta investigação, da autoria de Noémio Ramos: (2019) - Gil Vicente, Auto das Barcas, Inferno - Purgatório - Glória. (2018) - Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno, ...a interpretação -1. (2017) - Gil Vicente, Aderência do Paço, ...da Arcádia ao Paço. (2017) - Gil Vicente, Frágua de Amor, ...a mercadoria de Amor. (2017) - Gil Vicente, Feira (das Graças), ...da Banca Alemã (Fugger). (2017) - Gil Vicente, Os Físicos, ...e os amores d'el-rei. (2017) - Gil Vicente, Vida do Paço, ...a educação da Infanta e o rei. (2017) - Gil Vicente, Pastoril Português, Os líderes na Arcádia. (2017) - Gil Vicente, Inês Pereira, As Comunidades de Castela. (2017) - Gil Vicente, Tragédia Dom Duardos, O príncipe estrangeiro. (2015) - Gil Vicente, Auto dos Quatro Tempos, Triunfo do Verão - Sagração dos Reis Católicos. (2015) - Gil Vicente, Auto dos Reis Magos, ...(festa) Cavalgada dos Reis. (2014) - Gil Vicente, Auto Pastoril Castelhano, A autobiografia em 1502. (2013) - Gil Vicente, Exortação da Guerra, da Fama ao Inferno, 1515. (2012) - Gil Vicente, Tragédia de Liberata, do Templo de Apolo à Divisa de Coimbra. (2012) - Gil Vicente, O Clérigo da Beira, o povo espoliado - em pelota. (2010) - Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531 - Sobre o Auto da Índia. - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura" (2ª Edição, 2017) (2010) - Gil Vicente, O Velho da Horta, de Sibila Cassandra à "Tragédia da Sepultura". (2010) - Gil Vicente, Auto da Visitação. Sobre as origens. (2008) - Gil Vicente e Platão - Arte e Dialéctica, Íon de Platão. - Gil Vicente, Auto da Alma, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II... (2ª Edição, 2012) (2008) - Auto da Alma de Gil Vicente, Erasmo, o Enquiridion e Júlio II...
- Outras publicações: (2003) - Francês - Português, Dicionário do Tradutor. - Maria José Santos e A. Soares. (2005) - Os Maios de Olhão e o Auto da Lusitânia de Gil Vicente. - Noémio Ramos.
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