O Clérigo da Beira

Pedreanes

Gil Vicente, 1526

Segue-se outra farsa de folgar que trata como um Clérigo da Beira béspora de Natal determinou de ir aos coelhos, e indo pera a caça com um filho seu rezam as matinas.

Trata-se, outrossim, de um vilão que indo vender à corte uma lebre e uns capões e um cabaz com fruta foi roubado, que até o chapeirão lhe furtaram, o qual furto foi descoberto por Cecília demoninhada em quem diziam que falava um Pedreanes.

Foi representada ao muito poderoso e cristianíssimo rei dom João, o terceiro do nome em Portugal, em Almeirim.

Era do Senhor de 1526.

[ 1.Episódio ]

(Prólogo)

Entra o Clérigo com seu Filho, e diz o Filho:

1

1e

Filho

Vós haveis de celebrar

missa da festa, em pessoa,

e nam fazeis a coroa

antes que vamos caçar.

2e

Pois, pai, nam haveis de olhar

5

que sois clérigo da Beira,

porque já a gente cabreira

em tudo quer atentar.

2

3e

Clérigo

Ta mãe ma trosquiará

nam cures tu de conselhos,

10

cacemos nós dos coelhos

que isso à noite se fará.

4e

Filho

Sabeis, pai, que esqueceu lá

a foroa?

Clérigo

Vai por ela.

Filho

De uma légua hei d'ir trazê-la?

15

milhor viv'eu que lá vá!

3

5e

Clérigo

Pesar da ida e da vinda,

vai, torna pola foroa.

Filho

Vá lá quem tever coroa

que eu nam na tenho ainda.

20

6e

Clérigo

Creo que a vara há d'andar

se isso vai dessa maneira.

Filho

Eu nam sou vossa oliveira

que a haveis de varejar.

4

7e

Clérigo

Renego dessas repostas…

25

Vai muito asinha.

Filho

Eu creo

que cuidais que sou correo,

que vai e vem polas postas.

8e

Clérigo

Crê tu se me a mi nam fora

que ta mãe logo se assanha

30

já te eu dera uma tamanha

que tu foras logo ess'hora.

5

9e

Requeiro-te que vás embora

ante que se assanhe o abade.

Filho

Ainda eu nam tenho vontade,

35

lá é ela algures fora.

10e

Clérigo

Vai Francisco!

Filho

Si irás…,

ide vós! Nam tendes pés?

Clérigo

Filho de clérigo és

nunca bô feito farás.

40

6

11e

Filho

Piores são os de frei Mendo

e os do beneficiado

que vão tomar o bocado

que seu pai está comendo.

12e

Clérigo

Vai que já está no cortiço

45

senam tomá-la e trazê-la.

Filho

Já màora vou por ela…

Mas hei de furtar chouriço.

Vai o moço pola foroa e fica o Clérigo antre si dizendo:

7

13e

Clérigo

Medraria este rapaz

na corte mais que ninguém…,

50

porque, lá nam fazem bem

senam a quem menos faz.

14e

Outras manhas tem assaz,

cada uma muito boa

nunca diz bem de pessoa

55

nem verdade nunca a traz.

8

15e

Mexerica que, por nada,

rebolverá sam Francisco,

que pera a corte é um visco

que caça toda a manada.

60

Vem o Filho com a foroa e diz:

16e

Filho

Já minha mãe tem tascada

a regueifa do bautismo,

andai vós cá, pai, ao bismo

que ela nam lhe escapa nada.

9

17e

Clérigo

Rezemos matinas logo,

65

antes que entremos à caça,

que, como homem se embaraça

nela, nam é senam fogo.

18e

Filho

Matinas de cá da Beira

ou como quereis rezar?

70

Clérigo

Si, pera que é mudar

cada dia uma maneira?

10

19e

Porque os capelães del rei

que cá na Beira tem renda,

se rezam lá doutra lei…

75

Tem outra lei de fazenda.

20e

Mas Deos dê muita prebenda

Antone Alvarez… Que é rezão!

Que ele e outros que lá estão

nos leixaram esta lenda.

80

[ os dois preparam a cena para a reza]

[ Matinas ]

11

21e

Filho

Nome de Deos, começar.

Clérigo

Pater noster.

Filho

Que siso!

Na caça pera que é isso

senam domine labia. Andar.

22e

Clérigo

Domine labia mea…

85

Tu priol a pé irás.

Filho

Se cansares, assentar-te-ás,

pois que nam tens facanea.

12

23e

Clérigo

Venite exultemus.

Que cães e forão que temos

90

pera tempo de mester…

Filho

Domine dominus noster,

nos dê com que os manter

e coelhos que levemos.

24e

Clérigo

Celi enarrant gloriam Dei…,

95

nam cuide papa nem rei

que está no cume da serra.

Filho

Domini est terra

que é senhor de toda grei.

13

25e

Clérigo

Ora Te Deum laudamus

100

pois que tal menhã levamos

pera provarmos a perra.

Filho

Jubilate Deo omnis terra

diz que rezemos e vamos.

26e

Clérigo

Assi manda Deus, Deus meus,

105

e nos dá dia par eles.

Filho

Lauda dominum de celis

pois os coelhos são seus.

14

27e

Clérigo

Cantate, diz que cantemos

cantar novo e nam usado.

110

Filho

Cante o beneficiado

que nós pouco pão colhemos.

28e

Clérigo

Laudate Deum omnes gentes…,

laudate Nuno Ribeiro

que nunca paga dinheiro

115

e sempre arreganha os dentes.

15

29e

Filho

Levavi oculos meos…,

vi que os dinheiros alheios

muitos os repartem crus.

Clérigo

Nisi quia dominus

120

nos dará milhores meos.

30e

Filho

Qui confidunt in domino

tem esperança dereita.

Clérigo

In convertendo boa peita,

deste tal, nam hajas dó.

125

16

31e

Filho

Beati omnes que tem,

que estes podem dizer bem,

letatus sum in iis.

Clérigo

Lauda Hierusalem

a todo homem que tem

130

vinténs tostões e ceitis.

32e

Filho

Sepe expugnaverunt me

diz Lira na sua grosa

que é cousa perigosa

andardes à caça a pé.

135

17

33e

Clérigo

Se beato immaculato

m'emprestasse o seu mulato…,

mas nam sei se quererá.

Filho

Iam lucis orto si dará

em que leves ti e o fato.

140

34e

Clérigo

Dixi dominus que tinha

uma muito boa asninha

nam sede [cede] a dextris meis.

Filho

Donec ponam, tem seis,

e mais uma mulatinha.

145

Vede se as havereis.

18

35e

Clérigo

Beatus vir que tem sendeiro

que lhe aparou Deos Deorum.

Filho

Abet consilium impiorum

nam o emprestar sem dinheiro.

150

36e

Clérigo

Deus in nomine tuo dê graça

salva-me na tua faca.

Filho

Com dous arráteis de vaca

escusaríeis a caça.

19

37e

Clérigo

Ir à caça cada dia…

155

Aleluia. Aleluia.

Filho

Vamo-nos a bom bispo,

pedrada no teu toutiço.

Clérigo

Oremos.

Filho

Bem faremos.

[ conclui a reza em diálogo falado ]

Diz aqui:

38e

Clérigo

Venham-me os cães

160

as redes e o forão,

mas o coelheiro não,

que vives e reinas

na vila do Pedrogão.

20

39e

Filho

Abém.

165

Clérigo

Requiescant in pacem.

Filho

Maus pagadores te paguem.

Clérigo

Inducas in tentationem.

Filho

Responda-te Luís Homem.

40e

Clérigo

Exaudi orationes nostras.

170

Filho

Azambujo nessas costas.

Clérigo

Pater noster.

[fim das matinas]

[ Pausa: arrumação e recomeço ]

21

41e

Torna a casa muito prestes

e leva esse briviairo.

Filho

Em dia dalgum fadairo

175

foi quando vós pai nacestes.

42e

Porém, se eu lá bolver,

benzei-vos se cá vier!

Clérigo

Virás, Francisco ora vai,

que filho és de bom pai

180

e ta mãe boa molher.

22

43e

Dize-lhe que, se eu tardar,

que tanja a béspora e repique

muito bem, por que nam fique

a festa sem repicar.

185

44e

E há mester que correja

muito bem essa igreja,

e as galhetas, bem sabe ela

que hão já mister barrela…

E olhe tudo e proveja.

190

23

45e

Anda Tejo, à fragueira…

E dirás a ta mãe mais,

que me guarde os corporais

que ficam na cantareira.

46e

E o cales, achará

195

no almário de cá,

atado c'os seus toucados,

e os amitos, pendurados

onde a minha espada está.

24

47e

E a vestimenta achará

200

dobrada sobre a albarda,

que ponha tudo em guarda

como ela sabe já.

48e

E que alimpe bem a pia,

nam asse sempre castanhas,

205

e tire as teas d'aranhas

à mártel santa Luzia.

25

49e

E solte a cabra também

que está presa pola estola,

e logo, nam seja tola,

210

que correja tudo bem.

50e

Porque, se Deos cá aportar

Marcos Esteves da corte,

e achar tudo dessa sorte…,

vê-lo-eis vós espirar…

215

Ai ai.

26

51e

À ribeira! Que esse é ele…

Polos santos evangelhos,

já lhe ele pruem os artelhos

e se lhe escarrapiça a pele.

220

52e

Cão

Ão ão.

Clérigo

Guard'o cabrão.

Cão

Ão ão.

Clérigo

Ora cadela.

Cadela

Au au.

Clérigo

Ei-lo, vai pola portela,

sem cadela e sem cão.

225

[ Já sozinho conclui reflectindo ]

27

53e

Oh arrenego da vida!

Perdoe-me Deos consagrado…,

algum grande escomungado

me olhou à minha partida.

(fim do 1. Episódio) (fim do Prólogo)

[ I - Parte ]

[ 2. Episódio ]

Vem um filho dum lavrador e traz um cesto coberto e uma lebre e dois capões e, chegando ao Clérigo, diz:

28

54e

Gonçalo

Ora Deos vos dê prazer.

230

Clérigo

Que é isso que levas i?

Gonçalo

Uns marmelos levo aqui,

samicas pera vender.

55e

E esta lebre, pera haver

dinheiro dos cortesões,

235

e levo este par de capões

e limões pera os comer

29

56e

Qu'eles dinheiro terão.

Clérigo

Pois, que vás vender à corte!

Olha bem polo virote

240

nam te fies de rascão.

57e

Gonçalo

E rascões que aves são?

Samicas são alguns bichos.

Clérigo

Mas são lobos pera michos,

e raposas de nação.

245

30

58e

Gonçalo

Bem hei de saber vender.

Clérigo

E eles milhor comprar!

Se te puderem furtar

as orelhas hás de ver.

59e

Gonçalo

Nam me quero mais deter,

250

vou-me, e Deos vá comigo.

Clérigo

Olha bem por ti amigo.

Gonçalo

Bem sei o que hei de fazer.

[ 3. Episódio (encaixado) ]

Entram dois moços de paço muito louçãos, um chamam Duarte outro Almeida, o qual começa dizendo ao Duarte:

31

60e

Almeida

A tormenta da má vida

que eu levo neste paço,

255

sabes que conta lhe faço?

Que vou numa nau perdida

rota pelo espinhaço.

61e

Duarte

Bô dizer é esse, porém

dai a Deos tal apontar.

260

Almeida

Isso nam será zombar

já me disse, nam sei quem,

bem do vosso motejar.

32

62e

Duarte

Abasta, folguei de ver

sair-vos Túlio do seo,

265

muitos criará o centeo

mas poucos de tal saber.

63e

Almeida

Logo vos foram dizer

que era eu ratinho senhor.

Duarte

Nam sei, vós tomastes cor,

270

eu nam sei que isso quer ser.

33

64e

E vejo-vos mano, morto,

e tendes ar de mirrado.

Almeida

Vós estais mais aguçado

que canivete do Porto.

275

65e

Viva o conde do Redondo

que lhe furtais quanto tendes…,

mas, da sua graça Mendes,

vos acho eu todo mondo.

34

66e

Duarte

Logo falais per mondar,

280

como homem daquela terra,

já vós veríeis na serra

algum gadozinho andar.

67e

Nam digu'eu par'ò guardar,

senam vê-lo-íeis pacer

285

e, para vosso prazer,

sabereis [saberíeis] assoviar.

35

68e

Almeida

Per muitas formas zombais,

formas bem as conheceis,

olhai nam vos demudeis

290

primeiro que me entendais.

69e

Duarte

Assi como bafejais

ainda me cheirais a nabos.

Almeida

Bem parece que a dous cabos

coseis tudo o que falais.

295

36

70e

Duarte

Eu vejo vir um vilão…

Hei-o certo d'abraçar

porque se pode acertar

que será algum vosso irmão.

71e

Guarda-porcos, dá cá a mão.

300

Gonçalo

Nunca os eu guardei per mi.

Mas já eu a vosso pai vi

morder bem mau cordovão.

37

72e

Almeida

Parece-me que por sua arte

vos sacode ele a badana.

305

Dos michos desta somana

te dou vilão minha parte.

73e

Olhai cá, senhor Duarte…

Duarte

Almeida, que me quereis?

Tantas cousas pareceis

310

que nam sei de qual me farte.

38

74e

Porque é certo que eu vos vi

levar já merenda à vinha,

e cá, pregais à boquinha

coma dom priol daqui.

315

75e

E propriamente assi,

sabeis todo à narizinhos,

e onde fordes vezinhos

grande frio fará ali.

39

76e

Gonçalo

Bofá, vejo eu portugueses

320

da corte muito alterados,

mais propincos dos arados

que parentes dos Meneses.

77e

Duarte

Ó fi de puta avisado…

E o vilão é castiço,

325

o rapaz papa-chouriço,

rapaz mouro engragueijado.

40

78e

Gonçalo

Vós sombreiro acutilado,

cuidareis que sois alguém?

Pois vos eu conheço bem,

330

falai vós mais conchavado.

79e

Duarte

Rapaz, és tu namorado?

Ora fala, sem sabor…

Rapaz, que mudas a cor...

Gonçalo

Ora estais bem aviado.

335

41

80e

Almeida

Vendes a lebre vilão?

Gonçalo

Si fidalgo.

Almeida

Mostra cá.

Quanto a dás? Que custará?

Gonçalo

Samicas meo tostão.

Almeida

E no cesto que tens lá?

340

81e

Gonçalo

Trago aqui estes capões…,

e bôs marmelos, valentes,

se deles fordes contentes…,

e er, também trago limões

pera aguçardes os dentes.

345

Enquanto Gonçalo se abaixa a descobrir o cesto para mostrar tudo o que traz, foge Almeida e leva a lebre, e Gonçalo achando-a menos diz:

42

82e

Gonçalo

E a lebre que foi dela?

Duarte

Que sei eu?

Gonçalo

U-lo parceiro?

Duarte

Nam te deu ele o dinheiro?

Gonçalo

Pardeos! De graça vai ela…,

lá a leva ele o escudeiro.

350

83e

Duarte

Vai, vai correndo asinha,

que inda agora vai per i.

Gonçalo

Olhai-me vós per equi,

porque ela nam era minha

e é mal perdê-la assi.

355

43

84e

Duarte

Oh que gostoso vilão,

e que boa festa temos…

Almeida e eu partiremos

como irmão com irmão.

85e

Gonçalo

Ou, molher do amarelo,

360

vistes cá, se vem à mão,

um fidalgo terrastão

com uma lebre no capelo?

44

86e

Ou, vós, do saco de palha,

vistes-me cá minha lebre?

365

Ó dou-me a Deos que me leve,

nam hei d'achar nemigalha.

87e

Dizê, senhor sapateiro,

a minha lebre vai cá?...

Pera que é buscá-la já…,

370

dou já ò demo o escudeiro.

45

88e

Leve-a, por amor de Deos,

pola alma de meus finados,

porque lhe somos obrigados

eu, e todos meus heréus.

375

(fim do 3. Episódio)

Duarte, tanto que Gonçalo se partiu a buscar a lebre, foi-se e levou o cesto e os capões. E diz Gonçalo quando não acha novas da lebre:

46

89e

Gonçalo

Pior é que me dá cá

na vontade, que os capões,

foram c'os outros rascões,

caminho da ira má.

47

90e

Pardeos, tal vos é ela a vós,

380

isto é o com que eu renego,

fezera mais um Galego

na meta de uns matos sós.

91e

Uma escândola com'esta

enche de birra a pessoa…,

385

nem tal chufa nam é boa

pera béspera de festa.

48

92e

Como assi se usa cá

ai eramá que é mal…,

que quem furta um furto tal

390

outro melhor furtará.

93e

As almas dos cortesões

são coma nau sem governo,

porque cuidam que o inferno

que se come com limões.

395

49

94e

O carmelita nos sermões

bem lhes mostra o paraíso,

mas tanto vem eles isso

como eu vejo os meus capões.

Indo assim Gonçalo tornando-se para a sua aldeia, torna a achar o Clérigo, o qual lhe diz:

50

95e

Clérigo

Já tu Gonçalo vendeste?

400

Asinha tu despachaste!

Gonçalo

Praza ao mártire Santiaste

que nunca lha lebre preste!

96e

Abaste. Eu nam fui sesudo.

Clérigo

Conta, rogo-to Gonçalo.

405

Gonçalo

Mais porei eu em contá-lo

que eles em furtar-me tudo.

51

97e

Clérigo

Estava isso mau de ver.

Gonçalo

Sois profétego padrinho.

Mas se eu torno outro caminho

410

nam há ela assi de ser.

98e

Porém quereis-me dizer

um responso ou uma aquesta,

que m'apare Deos a cesta,

e dar-vos-ei do que tiver.

415

52

99e

Clérigo

Si queres miracula ver

torna lá c'um par de patos…

Que se os capões vão baratos

estes assi hão de ser.

100e

Calamitas demones hás de trazer,

420

porém o dinheiro será de mau mês.

Cedunt mare vincula res

que perdunt quanto vieres vender.

53

101e

Quero ora ir catar

cousa que me mate a brasa.

425

Gonçalo

Eu nam ouso de ir a casa…,

meu pai há-me de coçar.

102e

Clérigo

Espera-me a par do lugar

e eu irei lá contigo,

e rogar-lhe-ei como amigo

430

que nam te deixe de dar…

54

103e

Se topares lá em fundo

um negro, põe-te a recado,

porque é um perro malvado,

o maior ladrão do mundo.

435

104e

Nam olhes no que falar,

que é muito falso o cabrão…

Olha por teu chapeirão,

porque ele há-te d'atentar

se tens tu olhos ou não.

440

(fim do 2. Episódio)

[ II - Parte ]

[ 4. Episódio ]

Indo Gonçalo seu caminho, apartando-se do Clérigo, topa um Negro grande ladrão.

(Canto)

E entra cantando, buscando um mulato, e diz Gonçalo depois de cantar o Negro:

55

105e

Gonçalo

Dize Negro és da corte?

Negro

Quesso?

Gonçalo

S'és da corte.

Negro

Já a mi forro nam! Sá catibo.

boso conhecê Maracote?

106e

Corregedor Tibao é…

445

Ele comprai mi primeiro,

quando já pagá a rinheiro

deitá a mi fero na pé.

56

107e

É masa tredora aquele,

aramá que té ro Maracote.

450

Gonçalo

Mais tredoro era o rascote

quem me a mi furtou a lebre.

108e

Negro

Que é quesso que te furtai?

Gonçalo

Uma lebre de meu pai,

de meu cunhado, uns capões…,

455

e marmelos, e limões,

abonda, tudo lá vai.

57

109e

Negro

Jesu Jesu Deoso consabrado,

aramá tanta ladrão…

Jesu Jesu, um Caralasão,

460

Furunando sá sapantaro.

110e

Jesu Cralasão. Pato Nosso,

santo paceto ranho tue figo

valente tue sinco cego

salva tera pão nosso quanto dão

465

dá noves caro e debrite nose

debrita noses já libro noso galo.

amen Jesu Jesu Jesu.

58

111e

Sapantara Furunando,

dize rogo-te, falai,

470

conhecê tu que furtai,

por que tu nam bruguntando?

Gonçalo

Perguntarei por meu pai.

112e

Negro

Cal-te! Deoso cima sai

que furtai, ere oiai…

475

Deoso nunca vai dormi,

sempre abre oio assi

tamanha tu sapantai.

59

113e

Guarda-ma Reso mal

e senhora prito santo,

480

nunca rirá home branco:

Furunando furatá real.

114e

Nam sabe mi essa carera,

para quê, para comê?

Muto comê, muto bevê,

485

turo, turo, sá canseira.

60

115e

Dirá mundo turo canseira

senhor grande canseira

home prove canseira

muiere fermoso canseira

490

muier feo canseira

negro cativo canseira

senhoro de negro canseira

vai misa canseira

pregação longo canseira

495

crérigo nam tem muiere canseira

crérigo tem muiere

grande canseira

firalgo solto canseira

chovere muito canseira

500

nam podê chovere canseira

muito filho canseira

nunca pariro canseira

papa na Roma canseira

essa ratinho canseira

505

nam vamo paraíso: grande, grande,

grande canseira…;

vira resa mundo, turo, turo é canseira.

61

116e

Mi nam falá zombaria,

pos para que furtá…,

510

que riabo sempre sá,

abre oio turo ria…

117e

Mi buscá mulato, bai,

ficar abora ratinho.

Gonçalo

Eu aguardo meu padrinho,

515

que vá comigo a meu pai.

62

118e

E vou ao rio, perém,

porque hei sede e beberei,

e sicais, que nadarei

enquanto o clérigo vem.

520

119e

Leixarei o chapeirão

metido nesta mouteira,

e o cinto, e esmoleira,

porque lá logo o verão…,

nam me aqueça outra tal feira.

525

Espreita o Negro como Gonçalo esconde o chapeirão e o al e tanto que se vai entra dizendo:

63

120e

Negro

A mi abre oio e vê…,

ratinho tira besiro,

ere dexa aqui condiro…

Nam sei onde ele metê.

121e

Senhora santo Francico,

530

santa Antónia, sam Furunando,

pois mi há d'andar buscando

e levarê ele na bico.

64

122e

O seuro santa Maria!

Sabe à regina matoa misercoroda nutra dum cego savel até que vamos.

A oxulo filho d'egoa alto soso peamos já mentes já frentes Vinagre qu'ele quebraram em balde já ergo a quarte nossa há ilhos tue busca cordas oculos nosso convento e jeju com muito fruta ventre tu já tremes já pias.

Seuro santa Maria dinhero me lá darão que é vê esa carta dame mucho que furte cantara Furunando.

Acabada assi esta Salve Regina, acha o Negro o que Gonçalo leixou escondido e diz:

65

123e

Negro

Ei-lo, aqui sá, Deso graça…,

535

graça Deso esse é capote,

nunca dexá aqui palote,

ratinho, quem te forcase.

124e

Aramá que té ro vilam!

Que palote sabasam,

540

barete também bô era…,

mi cansai, e a deradera,

a mior fica sua maão.

66

125e

Vejamos bolsa que tem,

u u u pente para…, que bô!

545

Três ceitil Sá qui sô…,

ratinho nunca bitém.

126e

O riabo ladarão,

corpo re reso consobrado,

essa vilam murgurado

550

sá masa prove que cão.

67

127e

Quando bolsa mi achase

Fernand'Álvaro, esse si,

nunca pente sá ali.

Ah reso quem te furtase!

555

128e

Bolsa Nuna Ribeiro

home vai buscá rinheiro

a toro ere rize:

já rinheiro feito é…

Aramá que té ro gaitero.

560

68

129e

Fernand'Álvaro m'acontenta,

ele nunca rize nam,

logo chama cá crivam:

crivaninhai esormenta.

130e

Toma rinheiro vás ambora.

565

Voso home debe que busacai?

Mi da cureiro agarbá sai.

Boso que buscai corte agora?

69

131e

Buscai a rei jam Joam

pagá minha casaramento.

570

Dá cá, moso, trae esormento,

crivaninhai boso crivam.

132e

Home tomai, um, dos, quatro, sete…,

vás ambora: turo, turo,

sua rinheiro sá seguro…

575

Mioro que ele promete.

70

133e

Marco Estavez, moladeiro,

ele rize: santa Maria!

Dinheiro boso queria?

Bai bai durmir paieiro

580

134e

Boso que pedir muiero?

Tanta filho mi tem qui.

Quem manda boso pari,

boso grande parideiro!

71

135e

Boso seria muito bó

585

vaca ne Francico paia

tenha seis filho e mi só

nam temo comere nimigaia.

136e

Elle rize:

Que culpo tem a rei jam Joam

590

boso pari como porco?

Bai buscai sua pai torto

que dai a sua fio pam.

72

137e

Velha que boso querê

molla que a mi pobre sai.

595

Elle rize:

Por que boso nam guardai

rinheiro que boso bebê?

138e

Jeju, Jeju moladeiro,

sá riabo aquela home…,

600

quando a mi morê da fome

nunca busucai sua rinheiro.

73

139e

Porém, graça reos, a mi

nunca minga que furtá…,

pouco cá, pouco relá,

605

pouco requi, pouco reli…,

grão e grão galo fartá.

140e

Quem furtá home sesuro

e louvar a reoso com turo,

e senhoro prito santo…

610

A mi bai furtá, em tanto…,

camisa que sá na muro.

Vem Gonçalo tremendo com frio e diz:

74

141e

Gonçalo

Mui mau nadar faz Verão

até meado o Janeiro,

mas agora, é o ribeiro

615

que corta homem como cão.

142e

Jesu e o meu chapeirão,

e o cinto, e esmoleira?

Pois esta era a mouteira,

e este é o mesmo chão.

620

75

143e

Agora merecia eu

um par de trochadas boas…,

porque fiar nas pessoas

nunca outro fruto deu.

144e

Bem vi eu que o guinéu

625

me viu tudo aqui leixar…,

mas o seu negro pregar

me levou a mi o meu.

76

145e

Quem se faz mais verdadeiro,

crede, que é o mentiroso…,

630

e nunca vistes medroso

que nam finja de guerreiro,

e o ladrão de piadoso.

146e

Já todo o mundo é raposo,

já nam há i que fiar,

635

a mim mesmo hão de furtar

se m'eu daqui nam m'acosso.

(fim do 4. Episódio)

[ 5. Episódio ]

Roubado assim Gonçalo, vem uma Velha sua dona e traz consigo Cecília da Beira em que fala Pedreanes.

Entra a Velha e diz:

77

147e

Velha

Amara do meu fadairo

ui Fernando, neto meu,

qu'é do que teu pai te deu?

640

Que lá contou o vigairo

quão pouco trazes do teu.

148e

E teu pai é tam cruel

e tua mãe tam sandia,

que trouxe da estrebaria

645

uma vara d'azemel

pera te tirar a azia.

78

149e

Quando vi tamanha aquela

trago esta demoninhada…,

a Cezília nomeada,

650

fala Pedreanes nela

e descobrirá a cilada

150e

[chama]

Pedreanes.

Pedreanes

Aqui estou.

Velha

E aqui haveis d'estar…

E haveis-vos d'assentar.

655

E pois, sabeis quem roubou

meu neto, fazei-lho achar.

79

151e

Pedreanes

Nam há muito de tardar…

Mas logo aqui virão ter

quem isso lhe foi fazer…,

660

e se quiserem pagar

eu bem lho hei de dizer.

152e

Gonçalo

Que é o que me furtaram?

Vejamos se adevinhais.

Pedreanes

Dous mancebos te enganaram…,

665

e os limões que te levaram

venderam por seis reais.

80

153e

E uma moça corcovada,

está agora depenando

o capão de tua cunhada,

670

e o outro, se está assando…,

e a lebre pendurada.

154e

Ainda por mais sinal,

cobriram-na c'um sombreiro

em casa dum alfaiate.

675

Gonçalo

Que besteiro é este tal !...

Este é o dexemo inteiro

em trajos de carafate…

81

155e

Mais hei hoje de saber,

pois m'eu acho aqui à mão…

680

Assi Deos te dê prazer,

que tu me queiras dizer,

s' hei de casar cedo ou não?

156e

Pedreanes

Casarás polo Natal

com molher sem tua perda.

685

Seu corpo como cristal,

e achar-lhe-ás um sinal

no meio da coxa esquerda.

82

157e

E tem na teta dereita

um luar com três cabelos,

690

pola cinta muito estreita…,

de uma nádega contreita

e zambra dos cotovelos.

158e

Gonçalo

Nam hei de casar dessa arte,

nem Deos nam há de querer.

695

Pedreanes

Esta mesma hás tu d'haver!

Nem cases em outra parte

senam pouco hás de viver.

83

159e

Velha

Bento e louvado serás!

Deos e a virgem da Franqueira

700

que me tirou de canseira,

de casarás, nam casarás,

sei freira, nam sejas freira.

160e

Pedreanes

Pois que vós isso dizeis

e nam me preguntais nada,

705

antes de um ano e um mês

vós haveis de ser casada

c'um criado do marquês.

84

161e

Velha

Agora me quero eu rir…,

sabedes vós isso certo?

710

Pedreanes

Digo que estais tam perto

como eu de me partir

pera o meu negro deserto.

162e

Velha

Pedreanes, nam vos vades,

rogo-vo-lo, que ainda é cedo.

715

Sabedes vós, eu hei medo

serem isso vaidades,

e essoutro estar-se quedo.

Vem Duarte e Almeida.

85

163e

Duarte

Mantenha-vos Deos Brancanes!

Deos vos dê sempre boa hora.

720

Velha

Não falês em Deos agora

porque está aqui Pedreanes

que chegou agora est'hora.

164e

Duarte

A ele buscamos, senhora,

que o havemos bem mester…

725

E dar-lh'-emos d'alma em fora,

tudo quanto ele quiser

que o leve, muito embora.

86

165e

Velha

Pedreanes, a um grou

achará o rasto no ar…,

730

pois que me ele foi achar,

que velha assi como estou,

hei ainda de casar.

166e

Creo-o-lho polo que vejo,

porque eu sou muito sadia

735

e tenho a pele macia,

coma costas de cranguejo

ou lagosta da Atouguia.

87

167e

E tenho minhas arnelas…

Ponde-m'ora aqui a mão

740

mancebo, e haj'eu perdão,

ainda eu como co elas

uma posta de cação.

168e

O bafo a Deos louvores

é coma algália da Arruda,

745

or'eu farei outras cores…,

porque hei d'entrar em muda

como fazem os açores,

entam venham meus amores.

88

169e

Duarte

Pedreanes.

Pedreanes

Aqui estou.

750

Duarte

Estai, por amor de mi,

e nam vos vades daqui,

porque minha fé vos dou

que somos vossos enfim.

170e

Pedreanes

Se quereis levar na mão

755

isso por que me buscastes,

pagai a este vilão

a lebre que lhe tomastes,

e três vinténs por capão.

89

171e

E um tostão dos marmelos…,

760

e pagai-lhe seus limões.

Velha

Parece-me a mi rascões

que vos tornais amarelos.

Duarte

Paguemos-lhe três tostões.

172e

Almeida

Duarte, tendes vós i

765

dinheiro na faldriqueira.

Duarte

Eu vendi patos na feira?

Almeida

Nem eu tam pouco os vendi,

nem tenho eira nem beira.

90

173e

Pedreanes

Gonçalo, sei tu lembrado

770

que dixeste que, por Deos

lhe havias por perdoado…,

pola alma de teus heréus,

e nam te devem cornado...

174e

Vai pedir o chapeirão

775

ao negro do Maracote.

Gonçalo

Ora, fiai de rascão

que farpa todo o pelote

e nam se farta de pão.

( fim do drama )

(epílogo e conclusão da farsa)

[ Epílogo ]

91

175e

Almeida

Já nós somos sabedores

780

que é muito teu poder…,

e queríamos saber

planetas dalguns senhores

e sinos de seu nacer.

176e

E a que são inclinados

785

per sua costolação,

e quais são mais namorados

e assi, os que o nam são,

porque são desnamorados.

92

177e

E também as condições…,

790

de que planeta lhes vem,

declarado por itém….

Pedreanes

Dizei embora rascões

que eu sei isso muito bem.

178e

Porque, per ostrolomia

795

conheço os seus nacimentos,

e pola filosomia,

sei todolos pensamentos

que trazem na fantesia.

93

179e

Duarte

Qual é o mor namorado

800

de Portugal e Castela?

Pedreanes

É o conde de Penela,

mas anda dissimulado

por amor da sua estrela.

180e

Almeida

O senhor embaixador

805

do césar emperador!

Creo que naceu no céu,

mas se na terra naceu,

qual planeta em seu favor

foi a que lhe aconteceu?

810

94

181e

Pedreanes

Naceu uma noite clara,

quando a lua aparecia

e Vénus tomava a vara

com que as graças repartia…,

como em ele se declara.

815

182e

E estando assi lustrosa,

o fez tam sábio e humano

de condição tam graciosa…,

que nam tem em nada grosa

senam só ser castelhano.

820

95

183e

Duarte

O conde de Marialva

sabes quanto há de viver?

Pedreanes

Mau é isso de saber,

que ele nam é flor de malva

que apodrece sem chover.

825

184e

Com todas suas feridas

e muito enferma canseira,

contratou-se de maneira

que Deos lhe deve três vidas,

e esta é inda a primeira.

830

96

185e

Almeida

Do vedor é necessário

saber a planeta sua.

Pedreanes

Sua planeta é a lua,

o sino é Sagitário

com uma frecha da tabua.

835

186e

Tem fôlego como gato,

digo, vida perlongada,

porém nam coma de pato

senam só uma talhada,

inda que custe barato.

840

97

187e

Duarte

Sabes quantos anos há

que Vasco de Fóis é nado?

Pedreanes

Quando foi a do Selado

era ele mancebo já,

mas nam era tam barbado.

845

[… estrofe em falta?]

98

188e

Almeida

O senhor conde, meu senhor,

do Redondo, em que estrela

ou que planeta é aquela

que o fez tam sabedor,

pera que adoremos nela?

850

189e

Pedreanes

Esse conde, e outros assi,

por agora hão de ficar…

D'outrem podeis preguntar…

Mas eu tornarei aqui

e vós me ouvireis falar.

855

99

190e

Almeida

Afonso d'Albuquerque, irmão

que foi ao emperador,

que signo tem por senhor…,

e por que a sua condição

nam pudera ser melhor?

860

191e

Pedreanes

Mercúrio é a sua estrela…,

e será bem esquençado

se jogar jogo assentado,

porém, se jogar à pela

nam lhe ficará cruzado.

865

100

192e

Duarte

Eu tenho Jorge de Melo

por um padre sam Gião…,

traz sempre contas na mão,

mas nam sei lá no capelo

como vai à devação.

870

193e

Almeida

Ele reza pola rua,

que traz contas todo o dia

ou é por galanteria?

Pedreanes

Mui boa vontade é a sua

mas o cuidado o desvia.

875

101

194e

Reza mais que cinco donas

a Deos se está sem paixão.

Duarte

Que lhe pede na oração?

Pedreanes

Que lhe dê sete atafonas

à porta de sant'Antão.

880

195e

E que lhe dê tanto gado

como Isac trazia…,

e uma capitania

com que fosse tam honrado

como ele merecia.

885

102

196e

Almeida

Gaspar Gonçalves, Pedreanes,

em que signo naceria?

Faze-me esta obra pia,

e olha, que nam me enganes

porque vai sobre perfia.

890

197e

Desejo sabê-lo em cabo.

Pedreanes

Naceu no escorpião,

afaga-vos co a razão

mas despeja-vos c'o rabo

no cabo da concrusão.

895

[ Conclusão ]

103

198e

Duarte

E Brezeanos, guardador

das damas, qu'es perro viejo?

Pedreanes

Esse Brezeanos, senhor,

o seu signo é do cranguejo

porque anda a través do amor

900

e a través do desejo.

199e

E é tomado da lua,

muito seco dos espritos,

porque há i signos malditos

que nam tem graça nenhuma.

905

(fim do 5. Episódio)

[ Êxodo ]

Fim:

104

200e

E ao que quereis saber

das damas e amadores,

o domingo que vier

eu direi quanto souber,

delas e seus servidores.

910

201e

Insinar-vos-ei então

cantigas com que folgueis,

e agora, nam canteis,

fique por concrusão

que esse dia cantareis.

915

Deo gracias.