Auto de Exortação da guerra

Gil Vicente, 1514

A tragicomédia seguinte seu nome é Exortação da Guerra. Foi representada ao muito alto e nobre rei dom Manuel, o primeiro em Portugal deste nome, na sua cidade de Lisboa, na partida para Azamor do ilustre e mui magnífico senhor dom Gemes duque de Bragança e de Guimarães, etc.

Era de 1514 anos.

Interlocutores: Nigromante, Zebron, Danor, diabos, Policena, Pantasilea, Arquiles, Anibal, Heitor, Cepião.

Entra primeiramente um Clérigo nigromante e diz:

Clérigo

Famosos e esclarecidos

príncipes mui preciosos

na terra vitoriosos

e no céu muito queridos:

Sou clérigo natural

5

de Portugal

venho da cova Sebila

onde se esmera e estila

a sotileza infernal.

E venho mui copioso

10

mágico e nigromante

feiticeiro mui galante

astrólogo bem avondoso.

Tantas artes diabris

saber quis

15

que o mais forte diabo

darei preso polo rabo

ao ifante dom Luís.

Sei modos d'encantamentos

quais nunca soube ninguém

20

artes pera querer bem

remédios a pensamentos.

Farei de um coração duro

mais que muro

como brando leitoairo

25

e farei polo contrairo

que seja sempre seguro.

Sou mui grande encantador

faço grandes maravilhas

as diabólicas silhas

30

são todas em meu favor.

Farei cousas impossíveis

mui terríbeis

milagres mui evidentes

que é pera pasmar as gentes

35

visíveis e invisíveis.

Farei que uma dama esquiva

por mais sáfara que seja

quando o galante, a veja,

qu'ela folgue de ser viva.

40

Farei a dous namorados

mui penados

qu'estém cada um per si

e cousas farei aqui

que estareis maravilhados.

45

Farei por meo vintém

que uma dama muito fea

que de noite sem candea

nam pareça mal nem bem.

E outra fermosa e bela

50

como estrela

farei por sino forçado

que qualquer homem honrado

nam lhe pesasse com ela.

Far-vos-ei mais pera verdes

55

per esconjuro perfeito

que caseis todos a eito

o milhor que vós puderdes.

E farei da noite dia

per pura nigromancia

60

se o sol alumiar

e farei ir polo ar

toda a vã fantesia.

Far-vos-ei todos dormir

enquanto o sono vos durar

65

e far-vos-ei acordar

sem a terra vos sentir.

E farei um namorado

bem penado

se amar bem de verdade

70

que lhe dure essa vontade

até ter outro cuidado.

Far-vos-ei que desejeis

cousas que estão por fazer

e far-vos-ei receber

75

na hora que vos desposeis.

E farei que esta cidade

[ ]

estê pedra sobre pedra

e farei que quem nam medra

nunca tem prosperidade.

80

Farei per mágicas rasas

chuvas tam desatinadas

que estém as telhas deitadas

pelos telhados das casas.

E farei a torre da Sé

85

assi grande como é

per graça da sua clima

que tenha o alicece ao pé

e as ameas em cima.

Nam me quero mais gabar...

90

Nome de sam Cebrião

esconjuro-te Satão!

Senhores, nam espantar...

Zeet zeberet zerregud zebet

ó filui soter

95

rehe zezegot relinzet

ó filui soter.

Ó chaves das profundezas

abri os porros da terra

príncepes da eterna treva

100

pareçam tuas grandezas

Conjuro-te Satanás

onde estás

polo bafo dos dragões

pola ira dos liões

105

polo Vale de Jurafás

Polo fumo peçonhento

que sai da tua cadeira

e pola ardente fogueira

polo lago do tormento

110

Esconjuro-te Satão

de coração

zezegot selvece soter...

Conjuro-te Lucifer

que ouças minha oração

115

Polas névoas ardentes

que estão nas tuas moradas

polas poças povoadas

de bíbaras e serpentes

E pelo amargo tormento

120

mui sem tento

que dás aos encacerados

polos gritos dos danados

que nunca cessam momento.

Conjuro-te Berzebu

125

pola ceguidade hebraica

e pola malícia judaica

com a qual te alegras tu...

Rezeegut linteser

zamzorep tisal

130

sirofee nafezeri.

Vem os diabos Zebron e Danor, e diz Zebron:

Zebron

Que hás tu escomungado?

Clérigo

Ó irmãos venhais embora.

Danor

Que nos queres tu agora?

Clérigo

Que me façais um mandado.

135

Zebron

Polo altar de Satão

dom vilão.

Danor

Tom'ò por essas gadelhas

e cortemos-lhe as orelhas

qu'este clérigo é ladrão.

140

Clérigo

Manos nam me façais mal

compadres, primos, amigos.

Zebron

Não te temos em dous figos.

Clérigo

Como vai a Belial?...

Sua corte está em paz?

145

[ ]

Danor

Dá-lhe aramá um bofete

crismemos este rapaz

e chamemos-lhe Zobete.

Clérigo

Ora, falemos de siso...,

estais todos de saúde?

150

Zebron

Fi de puta! Meo almude!...

Que tens tu de ver co isso?

Clérigo

Minhas potências relaxo

e me abaxo

falai-me doutra maneira.

155

Danor

Sois bispo vós da Landeira

ou vigairo no Cartaxo?

Zebron

É cura do Lumiar

sochantre da Mealhada

acipreste de canada

160

bebe sem desfolegar.

Danor

É capelão terrantês

bô ingrês

patriarca em Ribatejo

beberá sobre um cangrejo

165

as goelas dum francês.

Zebron

Danor di-me: é cardeal

d'Arruda ou de Caparica?

Danor

Nenhua cousa lhe fica

senam sempre o vaso tal.

170

Tem um grande arcebispado

muito honrado

junto da Pedra da Estrema

onde põe a diadema

e a mitara o tal prelado.

175

Zebron

Ladrão sabes o Seixal

e Almada e per eli

ó fi de puta alfaqui

albardeiro do Tojal.

Clérigo

Diabos quereis fazer

180

o que eu quiser

por bem ou doutra feição?

Danor

Ó fi de puta ladrão

havemos-te d'obedecer?

Clérigo

Ora vos mando e remando

185

polas virtudes dos céus

pola potência de Deos

em cujo serviço ando.

Conjuro-vos da sua parte

sem mais arte

190

que façais o que eu mandar

pola terra e polo ar

aqui e em toda a parte.

Zebron

Como te vai com as terças?

É vivo aquele alifante

195

que foi a Roma tam galante?

Danor

Amargam-te a ti estas verças.

Clérigo

Esconjuro-te Danor

por amor

de sam Paulo e de sam Polo.

200

Zebron

Tu não tens nenhum miolo.

Clérigo

Eu vos farei vir a dor.

Por esta madre de Deos

de tam alta dinidade

e pola sua humildade

205

com que abriu os altos céus.

Polas veas virginais

emperiais

de que Cristo foi humanado.

Zebron

Que queres escomungado?

210

Manda-nos nam digas mais.

Clérigo

Minha mercê manda e ordena

que tragais logo essas horas

diante destas senhoras

a troiana Policena ...

215

Muito bem ataviada

e concertada...,

assi linda como era.

Danor

Quanta pancada te dera

[…] se pudera

220

mas tens-m'a força quebrada.

Clérigo

Venha por mar ou por terra

logo muito sem referta.

Zebron

E a terça da oferta

também pagas pera a guerra?

225

Clérigo

Trazei logo a Policena

mui sem pena

com sua festa diante.

Zebron

Inda irá outro alifante

pagarás quarto e vintena.

230

Policena

Eu que venho aqui fazer?

Oh que grã pena me destes

pois per força me trouxestes

a um novo padecer.

Que quem vive sem ventura

235

em grã tristura

ver prazeres lhe é mais morte.

Ó beleníssima corte

senhora da fermosura!

Nam foi o paço troiano

240

dino do vosso primor

vejo um Príamo maior

um césar mui soberano.

Outra Hécuba mais alta

mui sem falta

245

em poderosa doce humana

a quem por Febo e Diana

cada vez Deos mais esmalta.

E vós príncipe excelente

dai-me alvíssaras liberais

250

que vossas mostras são tais

que todo mundo é contente.

E aos planetas dos céus

mandou Deos

que vos dessem tais favores

255

que em grandeza sejais vós

prima dos antecessores.

Por vós mui fermosa flor

ifante dona Isabel

foram juntos em torpel

260

per mandado do senhor.

O céu e sua companha

[ ]

e julgou Jupiter juiz

que fôsseis emperatriz

de Castela e Alemanha.

265

Senhor ifante dom Fernando

vosso signo é de prudência

Mercúrio por excelência

favorece vosso bando.

Sereis rico e prosperado

270

e descansado

sem cuidado e sem fadiga

e sem guerra e sem briga

isto vos está guardado.

Ifante dona Breatiz

275

vós sois dos sinos julgada

que haveis de ser casada

nas partes de flor de lis.

Mais bem do que vós cuidais

muito mais

280

vos tem o mundo guardado.

Perdei senhores cuidado

pois com Deos tanto privais.

Clérigo

Que dizeis vós destas rosas

deste val de fermosura?

285

Policena

Tal fora minha ventura

como elas são de fermosas.

Oh que corte tam lozida

e guarnecida

de lindezas pera olhar.

290

Quem me pudera ficar

nesta gloriosa vida.

Danor

Nesta vida la acharás.

Policena

Quem me trouxe a este fado?

Danor

Esse zote escomungado

295

te trouxe aqui, onde estás?

Pergunta-lhe, que te quer,

pera ver...

Policena

Homem, a que me trouxeste?

Clérigo

Quê? Ainda agora vieste

300

e hás-me de responder.

Declara a estes senhores

pois foste d'amor ferida

qual achaste nesta vida

que é a mor dor das dores.

305

E se as penas infernais

se são às do amor iguais

ou se dão lá mais tormentos

dos que cá dão pensamentos

e as penas que nos dais.

310

Policena

Muito triste padecer

no inferno sinto eu

mas a dor que o amor me deu

nunca a mais pude esquecer.

[]

[]

[]

[]

[]

Clérigo

Que manhas, que gentileza,

315

há de ter o bom galante?

Policena

A primeira é ser constante

fundado todo em firmeza.

Nobre, secreto, calado

sofrido em ser desdanhado

320

sempre aberto o coração

pera receber paixão

mas nam pera ser mudado.

Há de ser mui liberal

todo fundado em franqueza

325

esta é a mor gentileza

do amante natural.

Porque é tam desviado

ser o escasso namorado

como estar fogo em geada

330

ou uma cousa pintada

ser o mesmo encorporado.

Há de ser o seu comer

dous bocados sospirando

e dormir meo velando

335

sem de todo adormecer.

Há de ter mui doces modos

humano cortês a todos

servir sem esperar dela

que quem ama com cautela

340

nam segue a tenção dos godos.

Clérigo

Qual é a cousa principal

por que deve ser amado?

Policena

Que seja mui esforçado

isto é o que mais lhe val.

345

Porque um velho idoso

feo e muito tossegoso

se na guerra tem boa fama

com a mais fermosa dama

merece de ser ditoso.

350

Senhores guerreiros guerreiros

e vós senhoras guerreiras

bandeiras e nam gorgueiras

lavrai pera os cavaleiros.

Que assi nas guerras troiãs

355

eu mesma e minhas irmãs

tecíamos os estandartes

bordados de todas partes

com devisas mui louçãs.

Com cantares e alegrias

360

dávamos nossos colares

e nossas jóias a pares

per essas capitanias.

Renegai dos desfiados

e dos pontos enlevados

365

[ ]

destrua-se aquela terra

dos perros arrenegados.

Oh quem viu Pantasilea

com quarenta mil donzelas

armadas coma as estrelas

370

no campo de Palomea.

Clérigo

Venha aqui trazei-ma cá.

Zebron

Deixa-nos ieramá.

Clérigo

Ora sus que estais fazendo?

Danor

Ò diabo que t'eu encomendo

375

e quem tal poder te dá.

Entra Pantasilea e diz:

Pantasilea

Que quereis a esta chorosa

rainha Pantasilea

à penada triste fea

pera corte tam fermosa?

380

Por que me quereis vós ver

diante vosso poder

rei das grandes maravilhas

que com pequenas quadrilhas

venceis quem quereis vencer?

385

Se eu senhor forra me vira

do inferno solta agora

e fora de mi senhora

meu senhor eu vos servira.

Empregara bem meus dias

390

em vossas capitanias

e minha frecha dourada

fora bem aventurada

e nam nas guerras vazias.

Ó famoso Portugal

395

conhece teu bem profundo

pois até ò pólo segundo

chega o teu poder real.

Avante avante senhores

pois que com grandes favores

400

todo o céu vos favorece

el rei de Fez esmorece

e Marrocos dá clamores.

Oh deixai de edificar

tantas câmaras dobradas

405

mui pintadas e douradas

que é gastar sem prestar.

Alabardas alabardas

espingardas espingardas

nam queirais ser genoeses

410

senam muito portugueses

e morar em casas pardas.

Cobrai fama de ferozes

nam de ricos que é perigosa

dourai a pátria vossa

415

com mais nozes que as vozes.

Avante avante Lixboa

que por todo mundo soa

tua próspera fortuna

pois que ventura t'enfuna

420

faze sempre de pessoa.

Arquiles que foi daqui

de perto desta cidade

chamai-o dirá a verdade

se nam quereis crer a mi.

425

Clérigo

Ora sus sus digo eu.

Zebron

Este clérigo é sandeu

onde estou que, o nam crismo?

Ó fi de puta judeu

queres vazar o abismo?

430

Vem Arquiles e diz:

Arquiles

Quando Jupiter estava

em toda sua fortaleza

e seu gram poder reinava

e seu braço dominava

os cursos da natureza.

435

Quando Martes influía

seus raios de vencimento

e suas forças repartia

quando Saturno dormia

com todo seu firmamento

440

E quando o sol mais lozia

e seus raios apurava

e, a lua aparecia

mais clara que o meo dia,

e quando Vénus cantava…

445

E quando Mercúrio estava

mais pronto em dar sapiência

e quando o céu se alegrava

e o mar mais manso estava

e os ventos em clemência

450

E quando os sinos estavam

com mais glória e alegria

e os pólos s'enfeitavam

e as nuvens se tiravam

e a luz resplandecia

455

E quando a alegria vera

foi em todas naturezas

nesse dia mês e era

quando tudo isto era

naceram vossas altezas.

460

Eu Arquiles fui criado

nesta terra muitos dias

e sam bem aventurado

ver este reino exalçado

e honrado per tantas vias.

465

Ó nobres seus naturais

por Deos nam vos descudeis

lembre-vos que triunfais

ó prelados nam durmais

clérigos nam murmureis.

470

Quando Roma a todas velas

conquistava toda a terra

todas donas e donzelas

davam suas jóias belas

pera manter os da guerra.

475

Ó pastores da igreja

moura a seita de Mafoma

ajudai a tal peleja

que açoutados vos veja

sem apelar pera Roma.

480

Deveis de vender as taças

empenhar os breviairos

fazer vasos de cabaças

e comer pão e rabaças

por vencer vossos contrairos.

485

Zebron

Assi assi aramá

dom zote que te parece?

Clérigo

E a mi que se me dá?

Quem de seu renda nam há

as terças pouco lh'empece.

490

Arquiles

Se viesse aqui Aníbal

e Heitor e Cepião

vereis o que vos dirão

das cousas de Portugal

com verdade e com rezão.

495

Clérigo

Sus Danor e tu Zebrão

venham todos três aqui.

Danor

Fi de puta rapaz cão

perro, clérigo, ladrão.

Zebron

Mau pesar vej'eu de ti.

500

Vem Anibal, Heitor, Cepião, e diz Anibal:

Anibal

Que cousa tam escusada

é agora aqui Anibal

que vossa corte é afamada

[ ]

per todo mundo em geral.

Heitor

Nem Heitor nam faz mister.

505

Cepião

Nem tam pouco Cepião.

Anibal

Deveis senhores esperar

em Deos que vos há de dar

toda África na vossa mão.

África foi de cristãos

510

mouros vo-la tem roubada

capitães ponde-lh'as mãos

que vós vireis mais louçãos

com famosa nomeada.

Ó senhoras portuguesas

515

gastai pedras preciosas

donas, donzelas, duquesas

que as tais guerras e empresas

são propriamente vossas.

É guerra de devação

520

por honra de vossa terra

cometida com rezão

formada com descrição

contra aquela gente perra.

Fazei contas de bugalhos

525

e perlas de camarinhas

firmais de cabeças d'alhos

isto si senhoras minhas

e esses que tendes dai-lhos.

Oh que nam honram vestidos

530

nem mui ricos atavios

mas os feitos nobrecidos

nam briais d'ouro tecidos

com trepas de desvarios

Dai-os pera capacetes.

535

E vós priores honrados

reparti os priorados

a soíços e a soldados

et centum pro uno accipietis.

A renda que apanhais

540

o milhor que vós podeis

nas igrejas nam gastais

aos proves pouca dais

eu nam sei que lhe fazeis.

Dai a terça do que houverdes

545

pera África conquistar

com mais prazer que puderdes

que quanto menos tiverdes

menos tereis que guardar.

[ ]

Ó senhores cidadãos

550

fidalgos e regedores

escutai os atambores

com ouvidos de cristãos.

E a gente popular

avante nam refusar

555

ponde a vida e a fazenda

porque pera tal contenda

ninguém deve recear.

Todas estas figuras se ordenaram em caracol, e a vozes cantaram e representaram o que se segue cantando todos:

Cantam:

Ta la la la lão ta la la la lão.

Anibal

Avante avante senhores

560

que na guerra com razão

anda Deos por capitão.

Cantam:

Ta la la la lão ta la la la lão.

Anibal

Guerra guerra todo estado

guerra guerra mui cruel

565

que o gram rei dom Manoel

contra mouros está irado.

Tem prometido e jurado

dentro no seu coração

que poucos lh'escaparão.

570

Cantam:

Ta la la la lão ta la la la lão.

Anibal falando:

Anibal

Sua alteza detremina

por acrecentar a fé

fazer da mesquita sé

em Fez por graça divina.

575

Guerra guerra mui contina

é sua grande tenção.

Cantam:

Ta la la la lão ta la la la lão.

Anibal falando:

Anibal

Este rei tam excelente

muito bem afortunado

580

tem o mundo rodeado

d'oriente ao ponente.

Deos mui alto omnipotente

o seu real coração

tem posto na sua mão.

585

Cantam:

Ta la la la lão ta la la la lão.

E com esta soíça se saíram, e fenece a susodita tragicomédia.