Auto da Alma

Gil Vicente, 1508.

Este auto presente foi feito à muito devota rainha dona Leonor e representado ao muito poderoso e nobre rei dom Emanuel seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos paços da Ribeira, em a noite de Endoenças.

Era do Senhor de 1508.

Argumento:

Assim como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens para repouso e refeição dos cansados caminhantes, assim foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira para refeição e descanso das almas que vão caminhantes para a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a madre santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da paixão.

E desta prefiguração trata a obra seguinte.

Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: santo Tomás, são Jerónimo, santo Ambrósio, santo Agostinho, e diz Agostinho:

Agostinho

Necessário foi amigos

que nesta triste carreira

desta vida

pera os mui perigosos perigos

dos imigos

5

houvesse alguma maneira

de guarida.

Porque a humana transitória

natureza vai cansada

em várias calmas

10

nesta carreira da glória

meritória

foi necessário pensada

pera as almas.

Pousada com mantimentos

15

mesa posta em clara luz

sempre esperando

com dobrados mantimentos

dos tormentos

que o filho de Deos na cruz

20

comprou penando.

Sua morte foi avença

dando por dar-nos paraíso

a sua vida

apreçada sem detença

25

por sentença

julgada a paga em proviso

e recebida.

À sua mortal empresa

foi santa estalajadeira

30

Igreja Madre

consolar à sua despesa

nesta mesa

qualquer alma caminheira

com o padre.

35

E o Anjo Custódio aio

alma que lhe é encomendada

se enfraquece

e lhe vai tomando raio

de desmaio

40

se chegando a esta pousada

se guarece.

Vem o Anjo Custódio com a Alma e diz:

Anjo

Alma humana formada

de nenhuma cousa feita

mui preciosa

45

de corrupção separada

e esmaltada

naquela frágua perfeita

gloriosa.

Planta neste vale posta

50

pera dar celestes flores

olorosas

e pera serdes tresposta

em a alta costa

onde se criam primores

55

mais que rosas.

Planta sois e caminheira

que ainda que estais vos is

donde viestes

vossa pátria verdadeira

60

é ser herdeira

da glória que conseguis

andai prestes.

Alma bem aventurada

dos anjos tanto querida

65

não durmais

um ponto não esteis parada

que a jornada

muito em breve é fenecida

se atentais.

70

Alma

Anjo que sois minha guarda

olhai por minha fraqueza

terreal

de toda a parte haja resguarda

que não arda

75

a minha preciosa riqueza

principal.

Cercai-me sempre ò redor

porque vou mui temerosa

de contenda

80

ó precioso defensor

meu favor

vossa espada lumiosa

me defenda.

Tende sempre mão em mim

85

porque hei medo de empeçar

e de cair.

Anjo

Pera isso sam e a isso vim

mas em fim

cumpre-vos de me ajudar

90

a resistir.

Não vos ocupem vaidades

riquezas nem seus debates

olhai por vós

que pompas honras herdades

95

e vaidades

são embates e combates

pera vós.

Vosso livre alvidrio

isento, forro, poderoso

100

vos é dado

polo divinal poderio

e senhorio

que possais fazer glorioso

vosso estado.

105

Deu-vos livre entendimento

e vontade libertada

e a memória

que tenhais em vosso tento

fundamento

110

que sois por ele criada

pera a glória.

E vendo Deos que o metal

em que vos pôs a estilar

pera merecer

115

que era mui fraco e mortal

e por tal

me manda a vos ajudar

e defender.

Andemos a estrada nossa

120

olhai não torneis atrás

que o imigo

à vossa vida gloriosa

porá grosa

não creais a Satanás

125

vosso perigo.

Continuai ter cuidado

na fim de vossa jornada

e a memória

que o spírito atalaiado

130

do pecado

caminha sem temer nada

pera a glória.

E nos laços infernais

e nas redes de tristura

135

tenebrosas

da carreira que passais

não caiais

siga vossa fermosura

as gloriosas.

140

Adianta-se o Anjo e vem o Diabo a ela, e diz o Diabo:

Diabo

Tão depressa ó delicada!

Alva pomba, pera onde is?

Quem vos engana,

e vos leva tão cansada

por estrada

145

que somente não sentis

se sois humana?

Não cureis de vos matar

que ainda estais em idade

de crecer…

150

Tempo há i pera folgar

e caminhar…,

vivei à vossa vontade

e havei prazer.

Gozai…, gozai dos bens da terra,

155

procurai por senhorios

e haveres.

Quem da vida vos desterra

à triste serra?

Quem vos fala em desvarios

160

por prazeres?

24

[ ]

Esta vida é descanso

doce e manso

não cureis doutro paraíso.

[ ]

Quem vos põe em vosso siso

165

outro remanso?

Alma

Não me detenhais aqui,

deixai-me ir, que em al me fundo.

Diabo

Oh descansai neste mundo

que todos fazem assi.

170

[ ]

[ ]

[ ]

Não são embalde os haveres

não são embalde os deleites

e fortunas

não são debalde os prazeres

e comeres

175

tudo são puros afeites

das criaturas.

Pera os homens se criaram

dai folga a vossa passagem

d'hoje a mais

180

descansai pois descansaram

os que passaram

por esta mesma romagem

que levais.

O que a vontade quiser

185

quanto o corpo desejar

tudo se faça

zombai de quem vos quiser

reprender

querendo-vos marteirar

190

tão de graça.

Tornara-me, se a vós fora…,

is tão triste atribulada

que é tormenta

senhora vós sois senhora

195

emperadora

não deveis a ninguém nada

sede isenta.

Anjo

Oh andai. Quem vos detém?

Como vindes pera a glória

200

devagar.

Ó meu Deos ó sumo bem

já ninguém

não se preza da vitória

em se salvar.

205

Já cansais Alma preciosa

tão asinha desmaiais

sede esforçada

oh como viríeis trigosa

e desejosa

210

se vísseis quanto ganhais

nesta jornada.

Caminhemos caminhemos

esforçai ora Alma santa

esclarecida.

215

Adianta-se o Anjo e torna Satanás:

Diabo

Que vaidades e que estremos

tão supremos

pera que é essa pressa tanta?

Tende vida.

Is mui desautorizada

220

descalça, pobre, perdida

de remate

não levais de vosso nada

amargurada

assi passais esta vida

225

em disparate.

Vesti ora este brial

metei o braço por aqui

ora esperai

oh como vem tão Real

230

isto tal

me parece bem a mi

ora andai.

Uns chapins haveis mister

de Valença, ei-los aqui

235

[ ...i]

agora estais vós molher

de parecer

ponde os braços presumptuosos

isso si.

Passeai-vos mui pomposa

240

daqui pera ali e de lá pera cá

e fantasiai

agora estais vós fermosa

como a rosa

tudo vos mui bem está

245

descansai.

Torna o Anjo à Alma dizendo:

Anjo

Que andais aqui fazendo?

Alma

Faço o que vejo fazer

pólo mundo.

Anjo

Ó Alma is-vos perdendo

250

[ ...endo]

correndo vos is meter

no profundo.

Quanto caminhais avante

tanto vos tornais atrás

e a través

255

tomastes ante com ante

por marcante

o cossairo Satanás

porque querês.

Oh caminhai com cuidado

260

que a virgem gloriosa

vos espera

deixais vosso principado

deserdado

enjeitais a glória vossa

265

e pátria vera.

Deixai esses chapins ora

e esses rabos tão sobejos

que is carregada

não vos tome a morte agora

270

tão senhora

nem sejais com tais desejos

sepultada.

Alma

Andai dai-me cá essa mão.

Andai vós que eu irei

275

quanto puder.

Adianta-se o Anjo e torna o Diabo:

Diabo

Todas as cousas com rezão

tem sazão

senhora eu vos direi

meu parecer.

280

Há i tempo de folgar

e idade de crecer

e outra idade

de mandar e triunfar

e apanhar

285

e aquirir prosperidade

a que puder.

Ainda é cedo pera a morte

tempo há de arrepender

e ir ao céu

290

ponde-vos a for da corte

desta sorte

viva vosso parecer

que tal naceu.

O ouro pera que é?

295

E as pedras preciosas

e brocados

e as sedas pera quê?

Tende por fé

que pera as almas mais ditosas

300

foram dados.

Vedes aqui um colar

d'ouro mui bem esmaltado

e dez anéis

agora estais vós pera casar

305

e namorar

neste espelho vos vereis

e sabereis.

Que não vos hei de enganar.

E poreis estes pendentes

310

em cada orelha seu

isso si

que as pessoas diligentes

são prudentes.

Agora vos digo eu

315

que vou contente daqui.

Alma

Oh como estou preciosa

tão dina pera servir

e santa pera adorar.

Anjo

Ó Alma despiadosa

320

perfiosa

quem vos devesse fugir

mais que guardar.

Pondes terra sobre terra

que esses ouros terra são

325

ó senhor

por que permites tal guerra

que desterra

ao reino da confusão

o teu lavor?

330

Não íeis mais despejada

e mais livre da primeira

pera andar?

Agora estais carregada

e embaraçada

335

com cousas que à derradeira

hão de ficar.

Tudo isso se descarrega

ao porto da sepultura

[ ...]

Alma santa quem vos cega

340

vos carrega

dessa vã desaventura.

[ ...]

Alma

Isto não me pesa nada

mas a fraca natureza

me embaraça

345

já não posso dar passada

de cansada

tanta é minha fraqueza

e tão sem graça.

Senhor ide-vos embora

350

que remédio em mi não sento

já estou tal.

Anjo

Sequer dai dous passos ora

até onde mora

a que tem o mantimento

355

celestial.

Ireis ali repousar

comereis alguns bocados

confortosos

porque a hóspeda é sem par

360

em agasalhar

os que vem atribulados

e chorosos.

Alma

É longe?

Anjo

Aqui mui perto

esforçai não desmaieis

365

e andemos

que ali há todo concerto

mui certo

quantas cousas querereis

tudo temos.

370

A hóspeda tem graça tanta

far-vos-á tantos favores.

Alma

Quem é ela?

Anjo

É a madre Igreja santa

[ ...anta]

e os seus santos doutores

375

i com ela.

Ireis di mui despejada

chea do spírito santo

e mui fermosa

ó Alma sede esforçada

380

outra passada

que não tendes de andar tanto

a ser esposa.

Diabo

Esperai. Onde vos is?

Essa pressa tão sobeja

385

é já pequice

como vós que presumis

consentis

continuardes a Igreja

sem velhice?

390

Dai-vos dai-vos a prazer

que muitas horas há nos anos

que lá vem

na hora que a morte vier

como xiquer

395

se perdoam quantos danos

a alma tem.

Olhai por vossa fazenda

tendes umas scrituras

de uns casais

400

de que perdeis grande renda

é contenda

que leixaram às escuras

vossos pais.

É demanda mui ligeira

405

litígios que são vencidos

em um riso

citai as partes terça feira

de maneira

como não fiquem perdidos

410

e havei siso.

Alma

Cal-te por amor de Deos

leixa-me não me persigas

bem abasta

estorvares os heréus

415

dos altos céus

que a vida em tuas brigas

se me gasta.

Leixa-me remediar

o que tu cruel danaste

420

sem vergonha

que não me posso abalar

nem chegar

ao lugar onde gaste

esta peçonha.

425

Anjo

Vedes aqui a pousada

verdadeira e mui segura

a quem quer vida.

Igreja

Oh como vindes cansada

e carregada.

430

Alma

Venho por minha ventura

amortecida.

Igreja

Quem sois? Pera onde andais?

Alma

Não sei pera onde vou

sou salvagem

435

sou uma alma que pecou

culpas mortais

contra o Deos que me criou

à sua imagem.

Sou a triste sem ventura

440

criada resplandescente

e preciosa

angélica em fermosura

e per natura

como raio reluzente

445

lumiosa.

E por minha triste sorte

e diabólicas maldades

violentas

estou mais morta que a morte

450

sem deporte

carregada de vaidades

peçonhentas.

Sou a triste sem mezinha

pecadora abstinada

455

perfiosa

pola triste culpa minha

mui mesquinha

a todo mal inclinada

e deleitosa.

460

Desterrei da minha mente

os meus perfeitos arreos

naturais

não me prezei de prudente

mas contente

465

me gozei com os trajos feos

mundanais.

Cada passo me perdi

em lugar de merecer

eu sou culpada

470

havei piedade de mi

que não me vi

perdi meu inocente ser

e sou danada.

E por mais graveza sento

475

não poder me arrepender

quanto queria

que meu triste pensamento

sendo isento

não me quer obedecer

480

como soía.

Socorrei hóspeda senhora

que a mão de Satanás

me tocou

e sou já de mi tão fora

485

que agora

não sei se avante se atrás

nem como vou.

Consolai minha fraqueza

com sagrada iguaria

490

que pereço

por vossa santa nobreza

que é franqueza

porque o que eu merecia

bem conheço.

495

Conheço-me por culpada

e digo diante vós

minha culpa…

Senhora, quero pousada!

Dai passada,

500

pois que padeceu por nós

quem nos desculpa.

Mandai-me ora agasalhar

capa dos desemparados

Igreja madre.

505

Igreja

Vinde-vos aqui assentar

mui devagar

que os manjares são guisados

por Deos padre.

Santo Agostinho doutor

510

Jerónimo, Ambrósio, sam Tomás

meus pilares

servi aqui por meu amor

a qual milhor

e tu Alma gostarás

515

meus manjares.

Ide à santa cozinha

tornemos esta Alma em si

por que mereça

de chegar onde caminha

520

e se detinha

pois que Deos a trouxe aqui

não pereça.

Enquanto estas coisas passam, Satanás passeia fazendo muitas vascas, e vem outro e diz:

Outro

Como andas desassossegado.

Diabo

Arso em fogo de pesar.

525

Outro

Que houveste?

Diabo

Ando tão desatinado

de enganado

que não posso repousar

que me preste.

530

Tinha uma alma enganada

já quasi pera infernal

mui acesa.

Outro

E quem ta levou forçada?

Diabo

O da espada.

535

Outro

Já m'ele fez outra tal

bulra como essa.

Tinha outra alma já vencida

em ponto de se enforcar

de desesperada

540

a nós toda oferecida

[ ...ida]

e eu prestes pera a levar

arrastada.

E ele fê-la chorar tanto

que as lágrimas corriam

545

pola terra

blasfemei entonces tanto

[ ...anto]

que meus gritos retiniam

pola serra.

Mas faço conta que perdi

550

outro dia ganharei

e ganharemos.

Diabo

Não digo eu irmão assi

[ ...i]

mas a esta tornarei

e veremos.

555

Torná-la-ei a afogar

despois que ela sair fora

da Igreja

e começar de caminhar

hei de apalpar

560

se venceram ainda agora

esta peleja.

Alma com o Anjo:

Alma

Vós não me desempareis

senhor meu Anjo Custódio

ó incréus

565

imigos que me quereis

[ ...eis]

que já sou fora do ódio

de meu Deos.

Leixai-me já tentadores

neste convite prezado

570

do senhor

guisado aos pecadores

com as dores

de Cristo crucificado

redentor.

575

Estas coisas estando a Alma assentada à mesa e o Anjo junto com ela em pé, vem os doutores com quatro bacios de cozinha cobertos cantando

Vexila regis prodeunt.

E, postos na mesa, santo Agostinho diz:

Agostinho

Vós senhora convidada

nesta cea soberana

celestial

haveis mister ser apartada

e transportada

580

de toda a cousa mundana

terreal.

Cerrai os olhos corporais

deitai ferros aos danados

apetitos

585

caminheiros infernais

pois buscais

os caminhos bem guiados

dos contritos.

Igreja

Benzei a mesa vós senhor

590

e pera consolação

da convidada

seja a oração de dor

sobre o tenor

da gloriosa paixão

595

consagrada.

E vós Alma rezareis

contemplando as vivas dores

da senhora

vós outros respondereis

600

[ ...eis]

pois que fostes rogadores

até agora.

Oração pera santo Agostinho:

Agostinho

Alto Deos maravilhoso

que o mundo visitaste

em carne humana

605

neste vale temeroso

e lacrimoso

tua glória nos mostraste

soberana.

E teu filho delicado

610

mimoso da divindade

e natureza

per todas partes chagado

e mui sangrado

pola nossa infirmidade

615

e vil fraqueza.

Ó emperador celeste

Deos alto mui poderoso

essencial

que polo homem que fizeste

620

ofereceste

o teu estado glorioso

a ser mortal.

E tua filha, madre, esposa,

horta nobre, frol dos céus,

625

virgem Maria,

mansa pomba gloriosa.

Oh quam chorosa

quando o seu Deos

padecia.

630

Oh lágrimas preciosas

do virginal coração

estiladas

correntes das dores vossas

[ ...osas]

com os olhos da perfeição

635

derramadas.

Quem uma só pudera ver

vira claramente nela

aquela dor

aquela pena e padecer

640

[ ...er]

com que choráveis donzela

vosso amor.

E quando vós amortecida

se lágrimas vos faltavam

não faltava

645

a vosso filho e vossa vida

[ ...ida]

chorar as que lhe ficaram

de quando orava.

Porque muito mais sentia

polos seus padecimentos

650

ver-vos tal

mais que quanto padecia

lhe doía

e dobrava seus tormentos

vosso mal.

655

Se se pudesse dizer

se se pudesse rezar

tanta dor

se se pudesse fazer

podermos ver

660

qual estáveis ao clavar

do redentor.

Ó fermosa face bela

ó resplandor divinal

que sentistes

665

quando a cruz se pôs à vela

e posto nela

o filho celestial

que paristes.

Vendo por cima da gente

670

assomar vosso conforto

tão chagado

cravado tão cruelmente

e vós presente

vendo-vos ser mãe do morto

675

e justiçado?

Ó rainha delicada

santidade escurecida

quem não chora

em ver morta e debruçada

680

a avogada

a força de nossa vida.

[ ...ora]

Ambrósio

Isto chorou Jeremias

sobre o monte de Sião

há já dias

685

porque sentiu que o messias

[ ...ias]

era nossa redenção.

[ ...ias]

E chorava a sem ventura

triste de Jerusalém

homecida

690

matando contra natura

[ ...ura]

seu Deos nascido em Belém

nesta vida.

Jerónimo

Quem vira o santo cordeiro

antre os lobos humildoso

695

escarnecido

julgado pêra o marteiro

do madeiro

seu rosto alvo e fermoso

mui cuspido.

700

Agostinho benze a mesa:

Agostinho

A benção do padre eternal

e do filho que por nós

sofreu tal dor

e do spírito santo igual

Deos imortal

705

convidada benza a vós

por seu amor.

Igreja

Ora sus, venha água às mãos.

Agostinho

Vós haveis-vos de lavar

em lágrimas da culpa vossa

710

e bem lavada

e haveis-vos de chegar

a limpar

a uma toalha fermosa

bem lavrada.

715

C'o sirgo das veas puras

da virgem sem mágoa nacido

e apurado

torcido com amarguras

às escuras

720

com grande dor guarnecido

e acabado.

Não que os olhos alimpeis

que o não consentirão

os tristes laços

725

que tais pontos achareis

da face e envés

que se rompe o coração

em pedaços.

Vereis seu triste lavrado

730

[ ...ura ]

natural

com tormentos pespontado

e figurado

Deos criador em figura

de mortal.

735

Esta toalha que aqui se fala é a Verónica, a qual santo Agostinho tira de entre os bacios e amostra à Alma, e a madre Igreja com os doutores lhe fazem adoração de joelhos cantando

Salve sancta facies,

e acabando diz a madre Igreja:

Igreja

Venha a primeira iguaria.

Jerónimo

Esta iguaria primeira

foi senhora

guisada sem alegria

em triste dia

740

a crueldade cozinheira

e matadora.

Gostá-la-eis com salsa e sal

de choros de muita dor

porque os costados

745

do messias divinal

santo sem mal

foram polo vosso amor

açoutados.

Esta iguaria em que aqui se fala são os açoutes, e em este passo os tiram dos bacios e os apresentam à Alma, e todos de joelhos adoram cantando

Ave flagellum,

e depois diz Jerónimo:

Jerónimo

Estoutro manjar segundo

750

é iguaria

que haveis de mastigar

em contemplar

a dor que o senhor do mundo

padecia

755

pera vos remediar.

Foi um tromento improviso

que aos miolos lhe chegou

e consentiu

por remediar o siso

760

que a vosso siso faltou

e pera ganhardes paraíso

a sofriu.

Esta iguaria segunda de que aqui se fala é a coroa de espinhos, e em este passo a tiram dos bacios, e de joelhos os santos doutores cantam

Ave corona espinearum,

e acabado diz a madre Igreja:

Igreja

Venha outra do teor...

Jerónimo

Estoutro manjar terceiro

765

foi guisado

em três lugares de dor

a qual maior

com a lenha do madeiro

mais prezado.

770

Come-se com grã tristeza

porque a virgem gloriosa

o viu guisar

viu cravar com grã crueza

a sua riqueza

775

e sua perla preciosa

viu furar.

E a este passo tira santo Agostinho os cravos, e todos de joelhos os adoram cantando

Dulce lignum dulcis clavus,

e acabada a adoração diz o Anjo à Alma:

Anjo

Leixai ora esses arreos,

que estoutra não se come assi

como cuidais,

780

pêra as almas são mui feos,

e são meos

com que não andam em si

os mortais.

Despe a Alma o vestido e jóias que lhe o inimigo deu, e diz Agostinho:

Agostinho

Ó Alma bem aconselhada

785

que dais o seu a cujo é,

o da terra à terra...,

agora ireis despejada

pola estrada

porque vencestes com fé

790

forte guerra.

Igreja

Venha essoutra iguaria...

Jerónimo

A quarta iguaria é tal

tão esmerada

de tão infinda valia

795

e contia

que na mente divinal

foi guisada.

Por mistério preparada

no sacrário virginal

800

mui coberta

da divindade cercada

e consagrada

despois ao padre eternal

dada em oferta.

805

Apresenta São Jerónimo à Alma um crucifixo que tira de entre os pratos, e os doutores o adoram cantando

Domine Jesu Christe…,

e acabando diz a Alma:

Alma

Com que forças, com que spirito

te darei triste louvores,

que sou nada

vendo-te Deos infinito

tão aflito,

810

padecendo tu as dores

e eu culpada?

Como estás tão quebrantado

filho de Deos imortal!

Quem te matou

815

Senhor, per cujo mandado

és justiçado

sendo Deos universal

que nos criou?

Agostinho

A fruita deste jantar

820

que neste altar vos foi dado

com amor

iremos todos buscar

ao pomar

adonde está sepultado

825

o redentor.

E todos com a Alma cantando

Te Deum laudamus

foram adorar o muimento.

Laus Deo.